Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 160 (2020-11)

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NOV EMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 17


vre”, para os estrategistas democra-
tas, que preferem essa outra expres-
são da Guerra Fria. Como vimos, sem
essa restauração, seria o “caos”, se-
gundo as palavras de Biden.
Essa tese do “tudo ou nada” su-
bestima ou deslegitima os cenários
alternativos de equilíbrio da ordem
internacional. Levando-se em conta
a inquietude aguda que afeta hoje
atores do primeiro escalão, como Ja-
pão ou Índia, em razão da escalada
de poder chinesa em sua vizinhança,
dois atores seriam, no entanto, capa-
zes, juntos ou separados, de pertur-
bar o cenário bipolar em via de rees-
crita. O primeiro é a Rússia, tão
denunciada pelo liberalismo hege-
mônico na Europa ou nos Estados
Unidos que Trump vem ensaiando
um pas de deux com Moscou desde
sua entrada na presidência. Ainda
que possamos reprovar esse país –
particularmente desde sua apropria-
ção ilegal da Crimeia em 2014 –, a si-
tuação contrasta com as ref lexões
dos diplomatas norte-americanos
realistas dos anos 1990, a exemplo do
republicano James Baker, de quem
uma biografia esclarecedora acaba
de ser publicada. “Hoje, devemos
cooperar com a Rússia quando po-
demos”, estimou em resposta a um
jornalista da Newsweek que o entre-
vistou em 2009 a respeito das tentati-
vas de reaproximação da adminis-
tração Obama. “Quando a Rússia se
opõe a nossos interesses nacionais,
devemos confrontá-la. Mas é triste
ver que há pessoas em meu partido
que lamentam que não tenhamos
mais inimigos declarados. Ganha-
mos muitas eleições durante a Guer-
ra Fria porque éramos o partido da
defesa nacional [...]. E alguns que-
rem recriar um inimigo: a China, a
Rússia. Não podemos concordar em
tudo com esses países. Mas, embora
não sejam mais nossos inimigos ho-
je, o problema é que podemos torná-
-los inimigos”.^10


OPORTUNIDADE PERDIDA
O bloqueio denunciado por Baker
ainda está presente no lado republi-
cano – a personalidade de um John
Bolton atesta isso. No entanto, a evo-
lução sociológica do partido, cada vez
menos elitista eleitoralmente, tem
por consequência que os guardiões
da chama da Guerra Fria migrem ca-
da vez mais claramente para o lado
democrata. A definição da política
externa norte-americana parece, em
outros termos, estruturada por uma
espécie de luta de classes. Esta é ilus-
trada de maneira improvável, porém
eficaz, por Trump, que retoma traços
de um Dwight Eisenhower para de-
nunciar o complexo militar-indus-
trial norte-americano: “Eu não digo
que os militares estão de acordo co-
migo. Os soldados estão. Já a alta hie-
rarquia do Pentágono é provável que
não esteja, sem dúvida porque só
quer guerras que deixem todas essas
maravilhosas empresas que fabricam
bombas, aviões e todo o resto felizes e
que assim permaneçam”.^11
Essa linguagem atinge direto o co-
ração dos eleitores de Trump, que pre-
ferem esquecer que esse dealmaker
[negociador árduo] se regozijou tam-
bém de ter obtido em 2017 do regime
saudita um contrato preliminar de
compra de material militar de US$
460 bilhões.^12 Em suma, essas contra-
dições no mínimo grosseiras lhes pa-
recem menos graves que as do lado
democrata, que, em nome da mudan-
ça, nomeou o senador de um paraíso
fiscal, o Delaware, que votou pela
guerra no Iraque em 2002. A ordem in-
ternacional retém menos a atenção
deles do que a pauperização desigual
da classe média. Eles querem que os
soldados parem de perder a vida em
guerras improdutivas. Assinariam,
sem dúvida, com as duas mãos, as
propostas de Biden para “tornar a di-
plomacia novamente a prioridade dos
Estados Unidos” e acabar com as
“guerras intermináveis”, se essas pro-

clamações de bom senso não tives-
sem sido redigidas por aqueles mes-
mos que se opuseram a toda mudança
fundamental de estratégia no Afega-
nistão durante dezessete anos. Eles
têm, por fim, dificuldade de com-
preender por que aqueles que denun-
ciam a regressão nostálgica expressa
pelo slogan “Torne a América grande
de novo” (“Make America great
again”) não deveriam intitular seu
próprio programa diplomático de
“Por que a América deve liderar de no-
vo” (“Why America must lead again”).
A última candidata a uma pertur-
bação do cenário bipolar em curso
permanece sendo a União Europeia,
mais confiável nesse papel que a
Rússia. Ela se vê, porém, questionada
por alguns de seus próprios Estados-
-membros, que consideram mais
vantajosa a dependência em relação
à Otan do que a autonomia estratégi-
ca europeia – um conceito trazido
por um casal franco-alemão desuni-
do e que faz ranger os dentes, de Haia
a Varsóvia, passando por Copenha-
gue. A eleição de Biden não mudaria
provavelmente nada nesse estado
das coisas. Poderia até agravá-lo. O
choque elétrico Trump oferecia ao
menos à Europa a possibilidade de
retomar progressivamente as rédeas
de seu próprio destino estratégico.
Essa oportunidade não foi aproveita-
da, e a provável restauração de uma
sociabilidade transatlântica na hipó-
tese de Biden vencer teria por efeito
encorajar os aliados a voltar sem re-
morso a uma nova era de subordina-
ção estratégica.
É preciso esperar que evoluções
políticas democráticas no continente
europeu venham perturbar essa
“morte cerebral” ilustrada pelo foco
excepcional nos resultados eleitorais
do soberano norte-americano. Esse
ref lexo revela menos sobre a impor-
tância dos Estados Unidos na ordem
internacional do que a impotência
europeia em imaginar outra solução

estratégica efetiva, apesar das lições
da era Trump.

*Olivier Zajec é mestre de conferências
em Ciência Política da Universidade Jean-
-Moulin – Lyon-III.

1 Joseph R. Biden Jr, “Why America must lead
again. Rescuing US foreign policy after
Trump” [Por que a América deve liderar de
novo. Salvando a política externa dos EUA
após Trump], Foreign Affairs, Nova York, mar.-
-abr. 2020.
2 Ibidem.
3 Nicholas J. Spykman, Americas Strategy in
World Politics: The United States and the Ba-
lance of Power [A estratégia da América na
política mundial: Os Estados Unidos e o equi-
líbrio de poder], Harcourt, Brace and Co.,
Nova York, 1942.
4 Michael E. O’Hanlon, The Senkaku Paradox:
Risking Great Power War Over Small Stakes
[O paradoxo Senkaku: correndo o risco de
guerra de grande porte por pequenas ques-
tões], Brookings Institution Press, Washing-
ton, DC, 2019.
5 Stephen Walt, The Hell of Good Intentions:
Americas Foreign Policy Elite and the Decline
of US Primacy [O inferno das boas intenções:
a elite da política externa norte-americana e o
declínio da primazia dos EUA], Farrar, Straus
and Giroux, Nova York, 2018.
6 “James Manyika speaks with Richard Haass
about businesses as global entities” [James
Manyika fala com Richard Haass sobre negó-
cios como entidades globais], McKinsey Glo-
bal Institute, Washington, DC, 16 out. 2020.
7 Michael C. Williams, The Realist Tradition and
the Limits of International Relations [A tradi-
ção realista e os limites das relações interna-
cionais], Cambridge University Press, 2005.
8 Strobe Talbott, “Self-Determination in an Inter-
dependent World” [Autodeterminação em um
mundo interdependente], Foreign Policy,
n.118, primeiro semestre de 2000.
9 Francis Fukuyama, Identity: The Demand for
Dignity and the Politics of Resentment [Iden-
tidade: a demanda por dignidade e a política
do ressentimento], Farrar, Straus and Gi-
roux, 2018.
10 Adam B. Kushner, “James Baker on the return
to realism” [James Baker sobre o retorno ao
realismo], Newsweek, Nova York, 16 jan.
2009.
11 “Trump: Pentagon leaders want war to keep
contractors ‘happy’” [Trump: líderes do Pentá-
gono querem a guerra para manter fornecedo-
res “felizes”], Associated Press, 7 set. 2020.
12 Javier E. David, “US-Saudi Arabia seal wea-
pons deal worth nearly $110 billion immedia-
tely, $350 billion over 10 years” [EUA-Arábia
Saudita selam negócio de armas no valor de
quase US$ 110 bilhões imediatamente, US$
350 bilhões ao longo de dez anos], CNBC, 20
maio 2017.

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