Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 160 (2020-11)

(Antfer) #1

22 Le Monde Diplomatique Brasil^ NOVEMBRO 2020


em qualquer expertise, o vínculo é
uma fonte de conf lito. A pessoa que
tem um vínculo de interesse com
uma empresa farmacêutica é de fato
inf luenciada em tudo o que concerne
a essa área, não só para defender um
medicamento ou outro”. A inf luência
é bem mais difusa do que a corrup-
ção. Vários estudos revelaram, assim,
que os médicos generalistas france-
ses que aceitam os presentes das em-
presas são também aqueles cujas
prescrições se mostram menos em
harmonia com o estado dos conheci-
mentos e as mais dispendiosas para o
seguro-saúde.^19
Longe de garantir a independên-
cia, a transparência talvez represente
um primeiro passo. Em matéria de fi-
nanciamento político, lembremos
que o Parlamento tinha autorizado
num primeiro momento o das cam-
panhas eleitorais pelas empresas,
com uma obrigação de publicidade.
A revelação do apoio maciço a alguns
eleitos por parte de empresas do tra-
tamento de águas ou da construção e
obras públicas durante a campanha
legislativa de 1993 tornara a situação
insustentável; o Legislativo acabou
proibindo e organizando um finan-
ciamento público. Até hoje, a popula-
ção se mostra mais exigente quanto à
probidade dos políticos do que a dos
médicos ou especialistas, mas isso
pode mudar. “Muitos clínicos estão
tomando consciência e isso está
prestes a acabar”, garante Chauvin. E
Yazdanpanah o testemunha: “Em
2017, pensava que, dadas minhas no-
vas responsabilidades no Inserm
[Institut National de la Santé et de la
Recherche Médicale (Instituto Na-
cional da Saúde e da Pesquisa Médi-
ca)], era melhor parar. Isso está mais
claro em minha cabeça; estou menos
p r e o c u p a d o”.


CIÊNCIA E LUCROS
Muito além dos presentes e dos re-
presentantes de vendas que cortejam
os médicos generalistas, a indústria
farmacêutica preserva sua grande lu-
cratividade tornando-se indispensá-
vel na elaboração de conhecimentos.
Inclusive utilizando-se da conduta
científica para seus próprios fins, res-
salta John Abramson, professor da
Harvard Medical School (Faculdade
de Medicina de Harvard): “Os labora-
tórios farmacêuticos transmitem in-
formações aos médicos para conven-
cê-los a exercer da melhor forma seus
interesses. O problema é que os mé-
dicos não se encontram suficiente-
mente armados para desvendar essas
manobras. A medicina fundamenta-
da nas provas e a medicina de alto ní-
vel são muitas vezes mais inf luencia-
das pelos interesses das empresas
farmacêuticas do que pela saúde dos
p a c i e n t e s”.^20 A indústria joga, sobre-


tudo, pelo viés da publicação: quan-
do um estudo não é bom, ele pode
continuar na gaveta. Constatando
que cerca da “metade dos ensaios clí-
nicos realizados jamais é relatada”,
principalmente os resultados negati-
vos, um coletivo internacional criado
em 2013 milita em prol de sua publi-
cação integral.^21
As melhores ferramentas podem
ser mal utilizadas, explica Toussaint:
“A medicina baseada nas provas
continua a ser muito importante
quando se trata de estudar a eficácia
de uma intervenção. Em compensa-
ção, quando se trata de gerar efeitos
indesejáveis, é a prudência que man-
da. Não havia necessidade de cin-
quenta ensaios para provar que o
Mediator era muito perigoso. Tínha-
mos dados de química e de farmaco-
logia suficientes para prever o que ia
acontecer. Desde os primeiros casos,
demorou muito tempo para estancar
os estragos”.

INOVAÇÃO?
Como as empresas conseguiram ter
esse poder? “Se você é infectologista
e quer fazer pesquisa clínica, você
não tem outra solução a não ser tra-
balhar com a indústria. Caso contrá-
rio, você não tem as moléculas ou as
vacinas em desenvolvimento”, expli-
ca Chauvin. “Felizmente, existe par-
ceria público-privada”, assegura Tat-
tevin, que não esconde seus próprios
vínculos de interesse. E prossegue:
“Se não houvesse a indústria farma-
cêutica, de um lado, e o hospital, do
outro, jamais haveria esse progresso,
como vi para a aids”. Lacombe se
mostra ainda mais categórica: “É pre-
ciso olhar as coisas de frente. Não se
pode produzir inovação científica
sem a indústria. É por isso que as coi-
sas são enquadradas”.
Toussaint confirma. “É claro, há
uma regulação. Os poderes públicos
dizem: ‘Vocês têm uma autorização
para colocar no mercado quando
comprovar que seu medicamento
tem certa eficácia e não é extrema-
mente perigoso. Uma vez feitos os
estudos, observaremos o relatório.
Você terá o retorno de seu investi-
mento, graças ao preço do medica-
mento’. A curto prazo, isso não custa
muito para a coletividade. É depois
que isso se torna um problema! Os
medicamentos são produzidos por
iniciativa das empresas nas áreas
que lhes interessam, do modo como
as interessa. Sem dúvida, elas devem
a transparência às autoridades, mas
detêm os dados. E, com o passar dos
anos, o regulador torna-se mais fra-
co que o regulado.”
“A inovação é uma palavra-chave
muito poderosa, que permite suscitar
a adesão da opinião pública e dos que
tomam as decisões. Nós brandimos o

progresso terapêutico para não calar
a indústria farmacêutica. Mais de
perto, isso parece muito menos evi-
dente. As cifras da comissão da trans-
parência da HAS ou da Prescrire mos-
tram que, dos novos medicamentos,
poucos são melhores do que aqueles
de que já dispúnhamos. Observa-
mos, sobretudo, um papel insignifi-
cante da inovação”, analisa Scheffer.
Entre as 1.292 novas especialidades
ou novas indicações estudadas pela
Prescrire entre 2007 e 2019, apenas
7,7% corresponderam a um progresso
“notável”; 1% representou um pro-
gresso “mínimo”; nada foi demons-
trado para 59,1%; e 16,3% se mostra-
ram mais perigosas do que úteis.
A indústria gasta bem mais com a
comercialização de seus produtos do
que com a pesquisa e o desenvolvi-
mento. Os estudos comparados de
moléculas existentes para as popula-
ções mais reduzidas, como as crian-
ças, as pessoas idosas e as grávidas,
não interessam muito. No entanto,
ela conserva as benesses do Estado e
alcança o segundo lugar relativo à
distribuição do crédito dos impostos
para pesquisa na França.^22 No entan-
to, se concedidos a laboratórios pú-
blicos, esses fundos permitiriam re-
duzir a inf luência das empresas sobre
a produção e a difusão do saber médi-
co. Em 2005, a Itália abriu o caminho
ao instaurar uma taxa de 5% sobre os
gastos promocionais das empresas
farmacêuticas visando aos profissio-
nais da saúde. O dinheiro recolhido
por um fundo nacional permite fi-
nanciar uma pesquisa clínica condu-
zida diretamente pela Agência Italia-
na de Medicamentos, que não se
contenta mais em apenas ler os estu-
dos que lhe são submetidos. Seus pes-
quisadores controlam inteiramente
os dados e os estudos que devem ser
publicados em sua integralidade.
Além dos medicamentos, o maná
que representam os serviços, os dis-
positivos e os aparelhos médicos ou
os dados de saúde suscita cobiças e
tentativas de corrupção. A chegada
de novas moléculas e de possíveis va-
cinas contra a Covid-19 demandará a
maior vigilância, pois os lucros pre-
vistos pela indústria estão à altura da
angústia que se apoderou do plane-
ta. Fenômeno com consequências
ainda mais pesadas: os interesses fi-
nanceiros e os jogos de inf luência
põem o foco da atenção nas terapêu-
ticas, nos tratamentos, no modelo
hospitalar; ora, essa crise é testemu-
nho, antes de mais nada, de uma fa-
lência da saúde pública, da preven-
ção, da redução do risco, dos
cuidados primários, que simboliza a
ruína do “testar, traçar, isolar”.

*Philippe Descamps é jornalista do Le
Monde Diplomatique.

1 “Emmanuel Macron: ‘Ce moment ébranle
beaucoup de choses en moi’” [Emmanuel
Macron: “Este momento provoca muitas
coisas em mim”], Le Point, Paris, 15 abr.
2020.
2 Ler Renaud Lambert, “Plombiers en blouse
blanche” [Encanadores com jaleco branco],
Le Monde Diplomatique, jul. 2020.
3 Pesquisa on-line da Harris Interactive enco-
mendada pela Philip Morris France, realizada
em 15 e 16 de junho de 2020 com uma amos-
tra representativa de 1.032 pessoas.
4 Artigo 14 do Código de Deontologia, artigo R.
4127-14 do Código da Saúde Pública.
5 Mandeep R. Mehra, Frank Ruschitzka e Amit
N. Patel, “Retraction – Hydroxychloroquine
or chloroquine with or without a macrolide for
treatment of COVID-19: a multinational re-
gistry analysis” [Retração – Hidroxicloroqui-
na ou cloroquina com ou sem um macrolídeo
para o tratamento de Covid-19: registro de
análise multinacional] The Lancet, Londres,
5 jun. 2020.
6 “Repurposed antiviral drugs for COVID-19;
interim WHO Solidarity trial results” [Drogas
antivirais reindicadas para Covid-19; resulta-
dos de testes da OMS Solidariedade], MedR-
xiv, 15 out. 2020. Disponível em: http://www.medr-
xiv.org.
7 Pesquisa realizada pela Ipsos para Les Entre-
prises du médicament, de 26 a 29 de novem-
bro de 2019, com uma amostra representativa
de 1.029 pessoas.
8 “Quelques leçons de la crise” [Algumas lições
da crise], Formindep, 3 jul. 2020. Disponível
em: https://formindep.fr.
9 “Pourquoi garder son indépendance face aux
laboratoires pharmaceutiques?” [Por que
manter a independência dos laboratórios far-
macêuticos?], La Troupe du R.I.R.E., 2014.
Documento inspirado no manual “Compren-
dre la promotion pharmaceutique et y répon-
dre” [Compreender a propaganda farmacêuti-
ca e reagir a ela], OMS e Action Internationale
pour la Santé, 2013.
10 “Classement 2018 des facultés françaises
en matière d’indépendance” [Classificação
2018 das faculdades francesas em matéria
de independência]. Disponível em: https://
formindep.fr.
11 Arrêt du Conseil d’État [Decisão do Conselho
de Estado] n.334396, 27 abr. 2011.
12 Sobre as missões dos órgãos públicos, ler
“Un empilement d’institutions” [Uma pilha de
instituições]. Disponível em: https://www.
monde-diplomatique.fr/.
13 http://www.transparence.sante.gouv.fr.
14 http://www.eurosfordocs.fr.
15 “‘Transparence CHU’: notre enquête sur les
liens entre médecins et groupes pharmaceuti-
ques à Clermont-Ferrand” [“Transparência
CHU”: nossa pesquisa sobre os vínculos en-
tre médicos e grupos farmacêuticos em Cler-
mont-Ferrand], La Montagne, Clermont-Fer-
rand, 10 jan. 2020.
16 “L’ordre des médecins” [A Ordem dos Médi-
cos], Cour des Comptes, Paris, dez. 2019.
17 Marcia Angell, “Drug companies and doc-
tors: A story of corruption” [Empresas de
medicamentos e médicos: uma história de
corrupção], The New York Review of Books,
15 jan. 2009.
18 De acordo com as últimas informações do Sé-
gur, os status dos clínicos de hospitais e dos
professores universitários.
19 Cf. especialmente Bruno Goupil et al., “Asso-
ciation between gifts from pharmaceutical
companies to French general practitioners
and their drug prescribing patterns in 2016”
[Associação entre presentes das empresas
farmacêuticas para médicos generalistas fran-
ceses e seus métodos de prescrição de medi-
camentos em 2016], British Medical Journal,
v.367, n.8221, Londres, Pequim, Délhi, Nova
York, 6 nov. 2019.
20 “Big Pharma, labos tout puissants” [Big
Pharma, laboratórios todo-poderosos], do-
cumentário de Luc Hermann e Claire Lasko,
Arte, 2020.
21 http://www.alltrials.net.
22 “L’évolution et les conditions de maîtrise du
crédit d’impôt en faveur de la recherche” [A
evolução e as condições de controle do crédi-
to de impostos em favor da pesquisa], Cour
des Comptes, jul. 2013.

.
Free download pdf