Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 160 (2020-11)

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NOV EMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 27


lip Alston, que até o início deste ano
era o relator especial para pobreza
extrema e direitos humanos das Na-
ções Unidas. Dois anos antes, ele se
inquietava com o “tsunami” de priva-
tizações que as PPPs gerariam.^5 Esse
ponto de vista era partilhado pelo ad-
vogado senegalês Aliou Saware:
“Quando o setor privado, muitas ve-
zes uma multinacional, prepara o
contrato com um Estado africano, já
está um passo à frente. Na verdade, o
setor privado nunca pode perder”.
As autoridades públicas se endivi-
dam profundamente ao longo de vá-
rias décadas, enquanto os contratos
fornecem todos os tipos de brecha
para os parceiros privados, se neces-
sário, fugirem às suas obrigações.
Muitas dessas PPPs são de fato “con-
tratos secos”, assinados sem cláusula
de renegociação, e montados às pres-
sas para cumprir os objetivos de cur-
to prazo das promessas eleitorais. Po-
dem incluir todos os tipos de encargo
para os governos, dependendo das
circunstâncias, como o pagamento
de compensação por uma queda na
taxa de câmbio ou uma queda acen-
tuada nos lucros. O projeto de gás
offshore Sankofa, uma PPP apoiada
pelo Banco Mundial em Gana, tor-
nou-se uma bomba-relógio para
Acra. De acordo com uma cláusula
baseada no mecanismo take or pay
(literalmente, “pegar ou pagar”), o
Estado é obrigado a recomprar 90%
da produção, podendo ou não utilizá-
-la. A demanda interna, contudo,
mostrou-se muito fraca, enquanto a
construção da infraestrutura asso-
ciada, necessária para a extração de
combustível, estava atrasada. Como
resultado, em 2019 Gana pagou US$
250 milhões pelo gás não utilizado.
Inaugurada em 2016 com grande
alarde pelo presidente senegalês,
Macky Sall, a “Rodovia do Futuro”,
que liga o novo aeroporto internacio-
nal de Blaise-Diagne à capital, Dacar,
primeira via com pedágios aberta na
África ocidental, é um caso emblemá-
tico de arranjo desfavorável ao gover-
no contratante. A concepção, cons-
trução e gestão foram confiadas à
Senac SA, subsidiária local do grupo
francês Eiffage, no âmbito de uma
PPP apoiada pela IFC: “A Senac inves-
tiu 70 bilhões de francos CFA (R$ 700
milhões), e o Estado senegalês, três
vezes mais. Ao final da concessão, da-
qui a trinta anos, a Senac terá ganho
quase 300 bilhões de francos CFA (R$
3 bilhões). O Estado senegalês, por
outro lado, embolsará apenas o IVA e
terá de reembolsar a dívida contraída
junto aos doadores das agências de
desenvolvimento, ou seja, mais de
200 bilhões de francos CFA (R$ 2 bi-
lhões) até 2059”, sublinha Saware.
Todos os setores com alta rentabi-
lidade são afetados, seja energia, re-


des de telefonia móvel e cabos de in-
ternet de alta velocidade, seja
estradas, portos, ferrovias ou aero-
portos. Mas a IFC também recomen-
da o uso de PPPs no campo social, por
exemplo, para a construção ou refor-
ma de hospitais, a fabricação e distri-
buição de medicamentos. “Ao contrá-
rio da crença popular, essa nova
fronteira na saúde não é um território
de risco para os investidores”, explica,
de Londres, Anna Marriott, consulto-
ra de políticas de saúde da sede britâ-
nica da Oxfam. “Os países mais desi-
guais do continente, como Quênia,
Nigéria, África do Sul, também têm
uma minoria urbana – a classe média
alta – disposta a pagar por cuidados
de saúde de qualidade”, explica.
Os primeiros estudos mostram,
entretanto, que as PPPs concluídas
no setor da saúde estão se revelando
tão perigosas para os Estados como
as outras. Em Uganda, por exemplo,
a construção e gestão do hospital de
Lubowa, nos arredores de Kampala,
foram objeto de uma PPP não com-
petitiva concedida a um consórcio
ítalo-ugandense. O custo da obra
acaba de se revelar US$ 130 milhões
mais alto para os cofres públicos do
que os US$ 250 milhões prometidos
na assinatura do contrato.^6 No Leso-
to, o Queen Mahomato Memorial
Hospital – único especializado do
país e construído, financiado e ope-
rado desde 2011 por uma PPP – deve-
ria, segundo a IFC, custar três vezes

menos do que a instalação substituí-
da. Três anos após sua inauguração,
em 2014, a unidade de 425 leitos en-
golfou 51% do orçamento nacional
de saúde para cobrir a explosão de
seus custos operacionais e emprés-
timos. Embora se mostrasse muito
lucrativo (25% do lucro) para os par-
ceiros privados do consórcio Tse-
pong Ltd, liderado pelo gigante sul-
-africano da saúde Netcare, o
hospital estava onerando o país para
atender às necessidades de saúde de
populações rurais. Hoje, o Queen
Mahomato Memorial Hospital con-
some apenas um terço do orçamen-
to nacional de saúde. Mas esse valor
triplicou desde 2014.
A Netcare, que terá investido ape-
nas 4% do valor total do projeto, é
acusada pelos demais sócios minori-
tários privados do consórcio de ter
desviado parte das receitas geradas
pelo hospital em benefício próprio.
Engajada em um impasse jurídico
com o Lesoto e doadores, a operadora
sul-africana ameaça: se o hospital fa-
lir, o reino montanhoso poderá en-
frentar uma crise de dívida soberana.
Na África, as PPPs correm o risco de
se transformar em armas fiscais à
medida que uma nova crise da dívida
se aproxima.^7

“PROBLEMAS, PROBLEMAS,
PROBLEMAS”
“Certamente podemos criticar a for-
ma como os países gerem seus negó-

cios, mas são de fato as causas exter-
nas que obrigam os Estados africanos
a continuar cumprindo o ditame das
instituições de Bretton Woods”, sin-
tetiza Romain Gelin, do Gresea. En-
tre essas principais razões exógenas,
estão os f luxos financeiros ilícitos e
os paraísos fiscais. Embora em 2018 o
continente tenha recebido US$ 29,7
bilhões da Assistência Oficial ao De-
senvolvimento (AOD), ele perdeu si-
multaneamente mais de US$ 50 bi-
lhões em f luxos financeiros ilícitos.^8
A dívida pública do continente era de
US$ 350 bilhões antes da irrupção do
coronavírus.
Assim como no início dos anos
2000, as iniciativas a favor da redução
ou anulação das dívidas africanas
voltam a pairar no ar sob a bandeira
das agências financeiras internacio-
nais e suas “condicionantes” neolibe-
rais. Mas, quarenta anos depois, as
greves e manifestações marcadas pe-
la oposição aos planos de ajuste es-
trutural desapareceram, e as PPPs,
apelidadas por alguns de “proble-
mas, problemas, problemas”, mobili-
zam menos nas ruas. Em Dacar, Sa-
ware (que denuncia o escândalo da
“Rodovia do Futuro”) convida a “pa-
rar e fazer um diagnóstico global pa-
ra determinar não apenas se o que
tem sido feito no campo das PPPs é
lucrativo, mas se também contribui
para o desenvolvimento sustentável e
para as gerações futuras”.

*Jean-Christophe Servant é jornalista.

1 “How will coronavirus affect public-private
partnerships? ” [Como o coronavírus afetará
as parcerias público-privadas?], Blog do Ban-
co Mundial, 10 mar. 2020. Disponível em: ht-
tps://blogs.worldbank.org.
2 “The free market will only deepen the corona-
virus crisis” [O livre mercado só vai aprofun-
dar a crise do coronavírus], Al Jazeera, 8 abr.


  1. Disponível em: http://www.aljazeera.com.
    3 “Les partenariats public-privé dans l’Union
    européenne: de multiples insuffisances et
    des avantages limites” [Parcerias público-
    -privadas na União Europeia: deficiências
    múltiplas e benefícios limitados], Relatório
    especial n.9, Tribunal de Contas Europeu,
    Luxemburgo, 2018.
    4 Discurso de 11 de abril de 2017. Disponível
    em: http://www.worldbank.org.
    5 “UN poverty expert warns against tsunami of
    unchecked privatisation” [Especialista em po-
    breza da ONU adverte contra tsunami de pri-
    vatização desenfreada], Escritório do Alto
    Comissariado das Nações Unidas para Direi-
    tos Humanos, 19 out. 2018. Disponível em:
    http://www.ohchr.org.
    6 “Fears raised about cost of PPP hospital in
    Uganda” [Surgem receios em relação ao
    custo de PPP para construção de hospital
    em Uganda], Campanha do Jubileu da Dívi-
    da, 8 jul. 2019. Disponível em: https://jubi-
    leedebt.org.uk.
    7 Ler Ndongo Samba Sylla, “En Afrique, la pro-
    messe de l’émergence reste un mirage” [Na
    África, a promessa de emergência permane-
    ce uma miragem], Le Monde Diplomatique,
    jun. 2020.
    8 Cf. Romain Gelin, “Qui finance les infrastruc-
    tures en Afrique” [Quem financia infraestrutu-
    ra na África], Comitê pelo Cancelamento de
    Dívida Ilegítima, Bruxelas, 9 nov. 2018. Dispo-
    nível em: http://www.cadtm.org.


Em 2018, foram identificadas 460 parceria público-privadas no continente

© Afolabi Sotunde/Reuters

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