Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 160 (2020-11)

(Antfer) #1

28 Le Monde Diplomatique Brasil^ NOVEMBRO 2020


UMA NOVA GERAÇÃO DE FEMINISTAS


A revolta das


sul-coreanas


Por trás da fachada moderna e do impulso das novas
tecnologias, a Coreia do Sul permanece uma sociedade
muito machista, onde as mulheres devem ser devotas à
sua família. Entretanto, em outubro, o governo apresentou
um projeto de lei que autoriza o aborto, uma proposta que
as feministas julgam muito tímida, enquanto as jovens
militantes preparam a revolta

POR FRÉDÉRIC OJARDIAS*

E


m 11 de abril de 2019, os juízes
da Corte Constitucional da Co-
reia do Sul proferiram um vere-
dicto histórico: por sete votos a
dois, decidiram que a criminalização
do aborto, em vigor havia décadas,
era ilegal. As sul-coreanas não preci-
sam mais se esconder; uma grande
vitória para as associações feminis-
tas. “O resultado de anos de luta”, ex-
clamou uma militante, com a voz al-
terada pela emoção, após o anúncio
do julgamento.
Outros avanços significativos fo-
ram obtidos com esforço nos últimos
anos. O movimento #metoo, que che-
gou tarde ao país, teve um impacto
considerável. No começo de 2018, a
procuradora Seo Ji-hyun acusou pu-
blicamente seu superior de tê-la toca-
do de maneira indevida e contou co-
mo sua carreira foi destruída após ter
ousado protestar. Outras seguiram
seu exemplo, quebrando a lei do silên-
cio. Dirigentes políticos, cineastas,
artistas, universitários: diversos ca-
sos de impacto surgiram, assinalan-
do a todos que as agressões sexuais,
outrora abafadas, não o seriam mais.
Após tais revelações, muitas mu-
lheres que ainda hesitavam se junta-
ram ao movimento, dando-lhe cara e
voz. No verão de 2018, as mais impor-
tantes manifestações feministas da
história do país ocorreram em Seul.
Aos gritos de “Minha vida não é seu
filme pornô”, dezenas de milhares de
mulheres denunciaram a inércia das
autoridades em relação à proliferação
de câmeras-espiãs, batizadas de
molka, instaladas em locais públicos
(banheiros, saunas) para filmá-las
sem que percebessem. Esses vídeos,
bem como sex tapes roubadas, eram
difundidos e vendidos na internet, ar-
ruinando a vida das vítimas. A polícia
e a justiça foram acusadas de demons-
trar laxismo e clemência culposa. Es-
sas manifestações de cólera levaram,

em agosto de 2019 e em seguida em
maio de 2020, a um reforço da lei que
pune os crimes sexuais on-line.
“As manifestações de 2018 foram
as primeiras reuniões feministas das
quais ousei participar”, conta Seo Ji-
-eun, de 22 anos, jornalista. Pois, na
Coreia do Sul, até a palavra é um ta-
bu: dizer-se “feminista” é provocar a
ira de sua família, de seus colegas ho-
mens, dos internautas... “Na época,
eu me escondia, tinha medo de que
me identificassem como militante e
me transformassem em alvo. Mas as
coisas mudaram.” Prova disso é o su-
cesso de Kim Ji-young, nascida em
1982 ,^1 romance de Cho Nam-joo, com
mais de 1 milhão de exemplares ven-
didos. Sua heroína, jovem casada, vê-
-se destruída pelas expectativas de
uma sociedade ultrapatriarcal, bem
como pelas humilhações cotidianas
e insidiosas impostas às mulheres.
Desse modo, pouco a pouco, al-
guns tabus caem. “Quando criamos
nossa organização, em 1991, nem se-
quer podíamos pronunciar as pala-
vras ‘violência sexual’”, recorda-se
Park A-reum, representante do Cen-
tro de Ajuda contra as Violências Se-
xuais. “Agora, as vítimas têm cora-
gem de falar. É uma grande
mudança.” O assassinato, em maio
de 2016, perto da estação de metrô
Gangnam, em Seul, de uma tran-
seunte de 23 anos por um desconhe-
cido de 34 anos que confessou ter de-
sejado matar uma mulher ao acaso
desencadeou uma onda de militân-
cia. Como explica Lee Min-kyung,
autora feminista: “Essa vítima pode-
ria ter sido eu. Após esse crime, o mo-
vimento feminista explodiu”.

MÃES SOLTEIRAS,
ESSAS “DEPRAVADAS”
Quatro anos depois, em abril de
2020, o primeiro partido feminista
sul-coreano se apresentou às elei-

ções legislativas. Não obteve ne-
nhum assento, mas sua existência
por si só constitui uma pequena re-
volução. A Assembleia Nacional tem
hoje 19% de deputadas – um recor-
de... para a Coreia do Sul. A democra-
cia taiwanesa vizinha conta com
41,6% de mulheres no Parlamento.
Sob sua aparência moderna e ul-
traconectada, a sociedade continua
na verdade muito impregnada da
ideologia neoconfuciana, que serviu
de coluna vertebral à dinastia Joseon
(1392-1910) e promove valores feroz-
mente patriarcais e conservadores:
ao longo da vida, a mulher deve ser
submissa a seu pai, a seu marido e em
seguida a seu filho mais velho. Sem
dúvida, a Coreia do Sul é uma demo-
cracia vigorosa que, em 2017, soube
destituir sua presidenta, Park Geun-
-hye – primeira mulher eleita para es-
se posto –, após meses de manifesta-
ções maciças e pacíficas.^2 Mas
continua impressionantemente atra-
sada na questão da igualdade entre
os sexos. E as sul-coreanas conti-
nuam batendo a cabeça em um teto
de vidro muito baixo.
As pressões sociais e familiares
para que elas peçam demissão após
o primeiro filho continuam esmaga-
doras. A figura tradicional permane-
ce aquela da hyobu, a nora modelo
que cozinha, cuida da casa e se dedi-
ca aos filhos, ao marido e aos sogros


  • um destino que quase não está
    mais nos sonhos das jovens sul-co-
    reanas, modernas, muito estudadas
    e abertas ao mundo.
    As mães solteiras sofrem muito
    com os efeitos desse patriarcado te-
    naz. Os nascimentos fora do casa-
    mento são raros (1,9% do total em
    2018, contra 59,1% na França)^3 e repro-
    vados com violência. As solteiras grá-
    vidas sofrem enormes pressões para
    abortar ou para abandonar seu bebê
    no nascimento. “Até meus pais me
    aconselharam a abandonar meu fi-
    lho”, testemunha Kim Do-kyung, pre-
    sidente da Associação Coreana de Fa-
    mílias de Mães Não Casadas (Korean
    Unwed Mothers Families Association,
    Kumfa). “Somos vistas como deprava-
    das. Muitas perdem o emprego: ficar
    com seu bebê significa tornar-se mais
    precária. Na escola, os pais pedem a
    seus filhos que não brinquem com o
    meu. Murmuram pelas minhas cos-
    tas. Não sou convidada para reuniões
    de pais de alunos. Na certidão de nas-
    cimento do meu filho, está indicado
    ‘nascido fora do casamento’. Ele foi
    etiquetado desde o primeiro dia.”
    Jovem mãe de uma filha de 14
    anos e membro da associação, Jeong
    Su-jin acrescenta: “Quando meu pa-
    trão soube que eu estava grávida e
    solteira, me mandou embora. Ele me
    disse: ‘Eu não quero alguém como
    você aqui’. Até meus colegas me


apontaram o dedo.” A Kumfa provê
uma assistência financeira e psicoló-
gica para essas mães, mas não recebe
nenhuma subvenção. Muitas soltei-
ras são excluídas de fato de certos
programas municipais de natalida-
de. Frequentemente rejeitadas por
sua própria família, foram por muito
tempo presa de agências de adoção
internacional pouco escrupulosas
que as acolhiam antes do parto e se
aproveitavam de sua angústia para
forçá-las a abandonar seu bebê. Esse
patriarcado profundamente enraiza-
do explica por que a Coreia do Sul,
embora rica e industrializada, conti-
nuou fornecendo milhares de crian-
ças para adoção no exterior.
Isso também tem um peso enor-
me no mundo do trabalho. As sul-co-
reanas, apesar de serem as mulheres
mais numerosas em termos de for-
mação universitária de todos os paí-
ses da Organização para a Coopera-
ção e o Desenvolvimento Econômico
(OCDE), ocupam os empregos mais
precários e menos bem pagos. “A dis-
criminação começa desde a entrevis-
ta de contratação”, explica Bae Jin-
-kyung, diretora da Associação das
Trabalhadoras da Coreia (Korea Wo-
men Workers Association). “É co-
mum que os recrutadores perguntem
a uma candidata se ela tem namora-
do, sobre os planos de casamento ou
de filhos. Uma vez no posto, serão
confiadas a ela responsabilidades
menores.” Ela também será excluída
dos huesik, os jantares de empresas
bem alcoólicos (que terminam às ve-
zes no bordel) que servem para nego-
ciar contratos, bem como para refor-
çar os laços no seio de uma equipe ou
para facilitar as promoções. Para
muitos empregadores, o mais sim-
ples é evitar recrutar mulheres, sus-
cetíveis de deixar a empresa a partir
do primeiro filho. Em 2018, três dos
maiores bancos da Coreia do Sul, Ha-
na Bank, Shinhan Bank e Kookmin
Bank, foram condenados por ter fal-
sificado seus processos de recruta-
mento: tinham baixado as notas das
candidatas a fim de privilegiar o re-
crutamento de homens.
As contratadas de certas profis-
sões muito feminizadas, como as en-
fermeiras, enfrentam sempre pres-
sões de seus superiores hierárquicos
para que só engravidem uma de cada
vez. “Em outros setores, as pessoas se
contentam em demitir aquelas que
engravidam. As leis sobre igualdade
dos sexos no trabalho existem, mas
são ignoradas”, denuncia Bae Jin-
-kyung. Segundo ela, a crise financei-
ra asiática de 1997, ao ter provocado
uma grande precarização do merca-
do de trabalho – sob a égide do FMI,
que veio “em socorro” –, tornou taci-
tamente aceitável o desrespeito ao
código trabalhista. Quanto ao salário

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