Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 160 (2020-11)

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32 Le Monde Diplomatique Brasil^ NOVEMBRO 2020


Em termos de número de navios
ativos, porém, a China está muito à
frente de todos os outros países. Em
2014, ela poderia orgulhar-se de ter
feito mais de 35% das capturas mun-
diais declaradas em alto-mar. A título
de comparação, Taiwan, com 593 na-
vios, representou cerca de 12% dessas
capturas, e o Japão, com 478 navios,
menos de 5%.


PEIXES SELVAGENS COMO RAÇÃO
Além de esvaziarem progressiva-
mente os oceanos de seus peixes, to-
dos esses subsídios fazem que haja
simplesmente barcos demais no mar.
Daí decorre uma sobrecapacidade de
pesca e uma concorrência pouco
saudável entre as frotas nacionais,
gerando disputas territoriais. Isso
exacerba a pesca ilegal, pois os capi-
tães procuram desesperadamente
novas áreas de pesca menos frequen-
tadas. Peter Thomson, enviado espe-
cial para os oceanos do secretário-
-geral das Nações Unidas, usa uma
comparação perturbadora para des-
crever a situação: “É um pouco como
pagar ladrões para roubarem a casa
do seu vizinho”.
Segundo um índice criado em
2019 pela Poseidon Aquatic Resource
Management Ltd – uma empresa de
consultoria britânica especializada
em pesca e aquicultura –, a China
tem as piores pontuações do mundo
em pesca ilegal, não declarada e não
regulamentada. Mas o país começa a
dar alguns passos tímidos na direção
certa, embora ambientalistas e espe-
cialistas continuem céticos.
Nos últimos anos, diante da pres-
são dos defensores dos oceanos e de
governos estrangeiros, a China deci-
diu controlar mais de perto sua frota.
Em 2016, foi promulgado um plano
quinquenal para limitar a 3 mil o nú-
mero de navios de pesca de grande
escala em alto-mar até 2021. No en-


tanto, na ausência de dados governa-
mentais confiáveis sobre o número
de barcos em atividade, é difícil ava-
liar o cumprimento desse objetivo.
Em junho de 2020, as autoridades
chinesas anunciaram ter proibido a
seus navios a captura de lulas em
certas águas territoriais da América
do Sul entre julho e novembro, com o
objetivo de permitir a recuperação
das populações. Foi a primeira vez
que a China cancelou uma tempora-
da de pesca por iniciativa própria.
“Acho que o governo chinês real-
mente pretende reduzir sua frota
pesqueira de pesca de grande escala
em alto-mar”, afirma Pauly. “Quanto
a saber se ele tem o poder de fazer
cumprir suas decisões, é outra histó-
ria. Duvido que a China tenha mais
autoridade sobre seus navios em al-
to-mar do que os países ocidentais
têm sobre os seus.”
Outro campo de ação: os peixes
de viveiro. Com uma classe média em
rápida expansão, a demanda chinesa
por frutos do mar está explodindo.
Para reduzir a dependência em rela-
ção à captura de peixes selvagens, en-
tre 2015 e 2019 a China concedeu
mais de US$ 250 milhões em subsí-
dios ao setor de aquicultura. Mas a
medida coloca um problema: para
engordar seus estoques, a maioria
das fazendas utiliza farinha de peixe,
uma mistura rica em proteínas feita
essencialmente à base de peixes sel-
vagens capturados em águas estran-
geiras ou internacionais. E eles a con-
somem em enormes quantidades:
antes de chegar ao consumidor, um
atum de viveiro pode ter comido
mais de quinze vezes seu peso em fa-
rinha de peixe. As associações de
proteção dos oceanos já soaram o
alarme. O grande consumo de fari-
nha de peixe acelera o esgotamento
dos recursos pesqueiros e só pode
aprofundar o problema da pesca ile-

gal e desestabilizar as cadeias ali-
mentares marinhas, privando as po-
pulações dos países pobres de uma
fonte de proteína indispensável para
sua subsistência. “Capturar todos es-
ses peixes selvagens para atender à
crescente demanda por peixes de vi-
veiro é um absurdo”, argumenta o ex-
-professor Enric Sala, que se tornou
explorador da National Geographic
Society. “Essas capturas poderiam
ser utilizadas para alimentar direta-
mente as populações, com um im-
pacto muito menos devastador para a
fauna submarina.”
O destino do krill, o alimento bá-
sico das baleias, também preocupa
os ambientalistas. Em 2015, as autori-
dades chinesas anunciaram a inten-
ção de aumentar sua captura de krill
no Oceano Glacial Antártico de 32
mil toneladas para 2 milhões de tone-
ladas, para garantir seu abasteci-
mento de farinha e óleo de peixe. Mas
assumiram o compromisso de não
tocar nas áreas “ambientalmente
sensíveis”.

“MILÍCIAS CIVIS”
A superpopulação naval não apenas
degrada o ambiente por meio da so-
brepesca e do esgotamento dos esto-
ques, mas também é acompanhada
por uma intensificação das rivalida-
des em torno dos locais de pesca, le-
vando a tensões diplomáticas e até a
confrontos violentos. Em 2016, a
guarda costeira sul-coreana abriu fo-
go contra dois barcos chineses que
ameaçavam atingir seus navios de
patrulha no Mar Amarelo – a mesma
região onde, um mês antes, um barco
a motor sul-coreano havia afundado
por causa de um ataque semelhante.
Nesse ano, a Argentina também
afundou um navio chinês acusado de
pescar ilegalmente em suas águas
territoriais. Outros países, como a In-
donésia, a África do Sul e as Filipinas,

passaram por confrontos semelhan-
tes, geralmente com barcos de pesca
de lula – espécie que representa mais
da metade das capturas da frota chi-
nesa em alto-mar.
Entre os inúmeros navios chine-
ses que singram os oceanos, há al-
guns que não estão ali apenas para
pescar, como explica Poling. Alguns
formam “milícias civis” enviadas pe-
lo governo às zonas de conf lito marí-
timo para fins de vigilância, ou ain-
da, ocasionalmente, para intimidar e
destruir barcos pesqueiros ou poli-
ciais estrangeiros. A China dispõe
para isso de um programa específico
de incentivos financeiros destinados
a encorajar os pescadores a navegar
no Mar da China Meridional a fim de
fortalecer suas posições lá. Além dos
benefícios de que gozam seus colegas
de pesca offshore, eles recebem fun-
dos suplementares para compensar o
fato de que a área é relativamente
pouco lucrativa.
Assim, há uma milícia de mais de
duzentos barcos estacionada ao redor
das Ilhas Spratly, região rica em peixes
e, potencialmente, em petróleo e gás
natural, disputada por quatro países:
China, Filipinas, Vietnã e Taiwan. Se-
gundo imagens de satélite, a frota chi-
nesa passa ali a maior parte do tempo
ancorada, em formação cerrada.
“Se não fossem pagos para isso, os
pequenos pescadores [chineses]
nunca pensariam em ir para lá”, afir-
ma Poling. De todo modo, sua pre-
sença acelerou o declínio das popula-
ções de peixes em torno do
arquipélago e causou muitas brigas
com navios estrangeiros, dando à
China um ótimo pretexto para mili-
tarizar a área.

*Ian Urbina, jornalista, dirige a plataforma
The Outlaw Ocean Project, que investiga
questões ambientais e direitos humanos no
mar. Autor de La Jungle des océans: cri-
mes impunis, esclavage, ultraviolence, pê-
che illégale [A selva dos oceanos: crimes
sem punição, escravidão, ultraviolência,
pesca ilegal], Payot, Paris, 2019.

1 São barcos que pescam com rede de cerco,
que se arrasta sobre os fundos arenosos.
2 “Some 340 Chinese vessels fishing off Ga-
lapagos Islands protected waters” [Cerca de
340 embarcações chinesas pescam nas
águas protegidas das Ilhas Galápagos], Mer-
coPress, 10 ago. 2020.
3 “Strings attached: Exploring the onshore net-
works behind illegal, unreported and unregu-
lated fishing” [No rastro do mar: explorando
as redes onshore por trás da pesca ilegal, não
declarada e não regulamentada], C4ADS,
Washington, DC, 2019.
4 “The deadly secret of China’s invisible arma-
da” [O segredo mortal da armada invisível da
China], NBC News, 22 jul. 2020.
5 Embarcações de pesca em alto-mar, que
atuam para além das 200 milhas náuticas que
delimitam as zonas econômicas exclusivas.
6 Enric Sala et al., “The economics of fishing the
high seas” [Economia da pesca em alto-mar],
Science Advances, v.4, n.6, Washington, DC,
jun. 2018.

© Edson Ikê

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