National Geographic - Portugal - Edição 236 (2020-11)

(Antfer) #1
CERCA DE 1,9 MILHÕES de turistas desem-
barcaram no Rio de Janeiro para um fim-
-de-semana de diversão em Fevereiro.
É altamente provável que os foliões não estivessem
a pensar nas dificuldades dos pobres enquanto
bebiam caipirinhas e se divertiam nas famosas
praias de Copacabana. No entanto, as dezenas de
milhares de pessoas que se juntaram no Sambó-
dromo Marquês de Sapucaí, um estádio na baixa
da cidade, para assistir aos 13 desfiles do domingo
de Carnaval de 2020 foram presenteadas com uma
celebração de mulheres brasileiras pobres.
A prestigiada escola de samba Unidos do Vi-
radouro aproveitou o desfile para prestar home-
nagem às trabalhadoras negras pobres, descen-
dentes de escravos africanos e conhecidas como
lavadeiras da cidade brasileira de Salvador. Uni-
dos do Viradouro foi considerada a melhor con-
corrente do concurso. O seu desfile foi aclamado
pela audiência internacional.
Aquele momento feliz acabou abruptamente.
O Brasil registou o seu primeiro caso de
COVID-19 nesse dia. Um empresário de 61 anos
que visitara recentemente o Norte de Itália diri-
giu-se a um hospital em São Paulo, queixando-se
de febre, tosse e dores de garganta. Foi o paciente
zero da América Latina. A sua infecção mostrou
aos especialistas da doença que o coronavírus já
deveria estar a propagar-se na América do Sul.
De súbito, os hospedeiros médica e economica-
mente vulneráveis ao vírus, como as lavadeiras,
e milhões de outras pessoas amontoadas nas fa-
velas do Brasil passavam a correr riscos graves.
Se a humanidade quiser vencer a COVID-19 e
outros vírus futuros, os pobres e os socialmente
desamparados terão de ser incluídos na rede de
segurança que nos protege a todos. (1) Em finais
de Agosto, o Brasil só era superado pelos EUA em
número total de infectados e mortes confirmadas.
Este é um vírus astuto. As pessoas afectadas por
antigas desigualdades sociais enraizadas em dife-
renças de classe, casta, raça e riqueza são particu-
larmente vulneráveis. O vírus aproveitou-se de
problemas previamente existentes. E quando se
cruzou com a agitação civil que eclodiu nos Esta-
dos Unidos no Verão passado deu origem a uma
sucessão de crises sobrepostas. Enquanto um
novo vírus atacava os pulmões, um vírus muito
mais familiar continuava a travar a guerra contra
a vida dos negros. Depois de ver George Floyd
morrer lentamente debaixo do joelho de um
agente da polícia de Minneapolis, o mundo reagiu
com fúria e determinação. No Médio Oriente, na

1.
A nível
mundial,
61% das
pessoas
trabalham
na econo-
mia informal,
como
emprega-
das
domésticas,
vendedoras
de rua,
motoristas
de serviços
de entregas
e traba-
lhadores
à jorna.

Os últimos suspiros são agora roti-
neiramente dados sem um toque fa-
miliar reconfortante, nem um abraço
de despedida. A COVID-19 transfor-
mou a morte na viagem mais solitária
da experiência humana partilhada.
“Os funerais são extraordinaria-
mente importantes para gerir a dor”,
comentou William Hoy, professor da
Universidade de Baylor. “Um funeral
por Zoom não é a mesma coisa. Temo
que vamos pagar um preço elevado
pela nossa incapacidade de nos abra-
çarmos, chorarmos e sofrermos jun-
tos no mesmo espaço físico.”
William salientou que “alguns so-
breviventes que perderam familia-
res durante os ataques terroristas de
11 de Setembro ainda não recupera-
ram do facto de os corpos dos seus en-
tes queridos nunca terem sido encon-
trados, nem devidamente sepultados.
As pessoas de luto precisam mesmo
do contacto humano”.
Tornou-se dolorosamente claro
que o vírus já alterou a vida tal como
a conhecemos. Além de um assusta-
dor número de mortos, o vírus rou-
bou-nos os tesouros mais essenciais
da nossa experiência partilhada. Ro-
tinas bem enraizadas, de trabalho,
de estudo e de vida em família, estão
agora estranhamente desfiguradas.
Os hábitos diários foram virados de
pernas para o ar. Os rituais comemo-
rativos de marcos importantes das
nossas vidas foram destroçados. Des-
de Março que, movidos pelo medo,
assumimos frequentemente com-
portamentos invulgares, como com-
prar papel higiénico ou discutir com
estranhos sobre a probidade de usar
máscaras em público.
As desigualdades estruturais e os
valores perigosamente mal alinhados
de sociedades de todo o mundo estão
a ser examinados e avaliados. O que
se qualifica como trabalho essencial?
Quem é um trabalhador essencial?
E por que razão se encontram os tra-
balhadores pobres tão desproporcio-
nadamente nas linhas da frente e tão
inadequadamente protegidos?

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