National Geographic - Portugal - Edição 236 (2020-11)

(Antfer) #1
Semanas após o início da pande-
mia, mais de 40% dos habitantes da
cidade que antes do vírus tinham
trabalho perderam os seus empregos,
muitos dos quais definitivamente.
Com base num inquérito realizado
pela Universidade de Michigan a
mais de setecentos inquiridos, a taxa
de desemprego de Detroit em finais
de Abril era quase de 48%. A morte
entrou na cidade como um desfile.
A história trágica de Jason Hargro-
ve é um aviso exemplar sobre a interli-
gação entre estranhos e a forma como
a morte espreita os encontros mais
banais. Casado e pai de seis filhos,
Jason conduzia um autocarro da rede
pública de Detroit. O seu trabalho era
considerado essencial numa cidade
onde quase 20% dos moradores de-
pendem dos transportes públicos. No
início de Março, Jason começou a fi-
car preocupado. Disse à mulher e aos
colegas ter receio de que o seu traba-
lho se tivesse tornado arriscado.
O pior pesadelo materializou-se
quando uma mulher de meia-idade
entrou no seu autocarro, instalou-se
atrás dele e tossiu repetidamente. Não
fez qualquer esforço para tapar a boca.
Numa publicação no Facebook da-
tada de 21 de Março, Jason Hargrove
desabafou, zangado, contra a mulher
não identificada. “Sinto-me violado.
Sinto-me violado pelas pessoas que
iam no autocarro quando isto aconte-
ceu”, disse no vídeo.
Onze dias depois de o vídeo ser
publicado, Jason Hargrove morreu
numa unidade de cuidados intensi-
vos, num hospital de Detroit. Era um
trabalhador da linha da frente que,
em tempos de pandemia, assumiu os
riscos de um emprego perigoso.
“O Jason era profundamente de-
dicado ao seu emprego”, disse a sua
mulher, Desha Johnson-Hargrove.
“Não ganhava milhões, mas sentia-
-se directamente responsável pela
segurança dos passageiros e gostava
sempre de se relacionar com eles.
Cumprimentava todos. Foi este o tipo
de pessoa que perdemos.”

À semelhança de legiões de operadores de
transportes públicos de cidades superlotadas
como Tóquio, Nova Iorque ou Mumbai, Jason
Hargrove não podia dar-se ao luxo de trabalhar a
partir de casa. Muitos passageiros também eram
trabalhadores essenciais, deslocando-se aos
empregos que pagavam pouco mas que exigiam
a sua presença física – uma fábrica, uma mer-
cearia ou um lar de idosos. Os autocarros trans-
formaram-se em pratos de petri sobre rodas.

SABEMOS, COM TODA A CERTEZA, que
alguns grupos de pessoas vão continuar a
correr grandes riscos de adoecer, ou mor-
rer, devido ao vírus. Pela mais simples das razões:
não têm acesso a cuidados de saúde ou, como
Jason Hargrove, são trabalhadores essenciais cuja
exposição é praticamente certa.
Isto acontece em todo o mundo. Sempre que
entramos numa mercearia, reparamos nos olhos
de uma mãe desesperada ou de outras pessoas
sem possibilidades de se resguardarem. É essa a
interligação de que, subitamente, nos apercebe-
mos: algumas das pessoas mais vulneráveis que
nos rodeiam são também as mais essenciais.
“O contrato social foi violado em demasiados
países e as próprias instituições globais criadas
para reforçar os direitos, a igualdade, o cresci-
mento e a estabilidade global contribuíram para
a convergência de crises que o mundo enfrenta
neste momento”, afirmou Sharan Burrow, secre-
tária-geral da Confederação Internacional dos
Sindicatos, uma organização sindical interna-
cional que representa 200 milhões de trabalha-
dores em 163 países e territórios.
Como é evidente, o vasto âmbito da pobreza
global já era impressionante muito antes da che-
gada da COVID-19. Quase metade da população
mundial vive na pobreza, segundo a Oxfam,
uma instituição de caridade internacional que
dedica os seus esforços a mitigar a pobreza glo-
bal. A fortuna combinada das 2.153 pessoas mais
ricas do mundo excede a riqueza de 4.600 mi-

EM DETROIT, A DOENÇA EXPÔS TODOS
OS PROBLEMAS PREEXISTENTES, COMO
A POBREZA E O DESEMPREGO, QUE TÊM
POSTO A CIDADE EM PERIGO.

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