National Geographic - Portugal - Edição 236 (2020-11)

(Antfer) #1
Contando com Marsha e Derrick, havia nove irmãos na
casa da família, na pequena cidade de Greensburg. Mar-
sha era camionista. Foi jogador de futebol americano no
liceu e estudou engenharia na faculdade. “Não tínhamos
amigos”, diz Derrick. “Tínhamo-nos uns aos outros. Era
ele que nos mantinha todos juntos.”
As duas jovens com os braços da mãe à volta da sua cin-
tura são as irmãs Segui: Morit e Chloe. O pai, Yves-Emma-
nuel Segui, emigrou para os EUA vindo da Costa do Mar-
fim, onde se formou como farmacêutico. Lá, o quotidiano
era em francês. Em Nova Jersey, onde criou a família,
Yves chumbava constantemente no exame para obter a
licença de farmacêutico, feito em língua inglesa. Sempre
que chumbava, começava a estudar para repetir a prova.
Foi por isso que “The New York Times” usou o título “O
Indómito Farmacêutico do Bronx” no seu obituário, de-
pois de a COVID-19 o matar aos 60 anos. Na sua oitava
tentativa, Yves superou o exame e arranjou, finalmente,
trabalho numa farmácia, para a qual se deslocava de au-
tocarro e comboio vindo de Newark, gastando três horas
de viagem em cada sentido.
A mulher de camisola branca e cabeça erguida enquan-
to chora, é Elaine Fields, cujo marido, Eddie, tinha 68 anos
quando morreu num hospital de Detroit em Abril. Eddie
era um operário fabril reformado da General Motors,
excelente jogador de bowling e fanático por automóveis
clássicos. As tragédias são comuns, diz o início de uma
canção do falecido artista gospel Walter Hawkins. “Todos
os tipos de doenças. As pessoas esfumam-se.” Quando
Biba Adams foi recolher os objectos pessoais da mãe ao
hospital, descobriu um papel com a letra dessa canção
dobrado dentro da carteira de Elaine Head. Hawkins es-
creveu a canção há muitos anos. É sobre gratidão e não
sobre doença. O coro, aliás, agradece a Jesus. Mas o la-
mento dos versos prenuncia um contágio moderno viru-
lento, um sistema de saúde dilapidado e uma sociedade
profundamente estratificada, juntando-se para atacar,
com grande ferocidade, as minorias raciais e os pobres
dos EUA (gráfico, à direita). “As pessoas não ganham o
suficiente para pagarem. Nenhum lugar parece seguro”,
prossegue a canção.
A letra não corresponde exactamente à verdade du-
rante a pandemia de 2020. Algumas pessoas conseguem
ganhar o suficiente. Alguns lugares são seguros ou, pelo
menos, mais seguros do que outros. E algumas tragédias
não são, de todo, comuns.
Biba Adams emoldurou a letra e pendurou-a na sala de
jantar. Em Julho, organizou por fim o memorial da sua
mãe no quintal, onde os convidados com máscaras escu-
taram a canção de Hawkins e recordaram-na. Encomen-
dou uma caixa de borboletas vivas para libertar porque a
mãe teria gostado do gesto. “Preciso de fazer esta cerimó-
nia”, disse. “Preciso de fechar esta porta.”^ j

MATTHEW W. CHWASTYK,
IRENE BERMAN-VAPORIS
E TAYLOR MAGGIACOMO;
KELSEY NOWAKOWSKI
FONTES: DEPARTAMENTO DA SAÚDE
E DE SERVIÇOS HUMANOS DO
MICHIGAN; GABINETE DE SAÚDE
PÚBLICA DO LOUISIANA; SAÚDE
PÚBLICA DE NOVA IORQUE; THE NEW
YORK TIMES; OXFORD COVID-19
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