National Geographic - Portugal - Edição 236 (2020-11)

(Antfer) #1
TEXTO DE GONÇALO PEREIRA ROSA
FOTOGRAFIAS DE ADRIANO FAGUNDES

R


oda-se o prato com mil cuidados, não vá a
falta de destreza do portador provocar um
incidente épico num artefacto que resiste
desde a Antiguidade. Está escrito em ara-
maico, uma língua semítica falada origi-
nalmente na Síria e ainda hoje usada. As inscrições,
essas, não poderiam ser mais modernas. Descrevem
a doença e o modo de a tratar. Terá sido um artefacto
de boticário, um prato para preparar mezinhas medi-
cinais. O idioma pode ser exótico, mas o tema está
mais próximo do que nunca. Apesar de mais de
catorze séculos nos separarem, na doença permane-
cemos vulneráveis.
O objecto seguinte aborda outra dimensão da rela-
ção humana com a debilidade física. Uma moeda
evoca um reino alemão assolado pela doença. No solo,
jaz uma vítima, curiosamente com formas voluptuo-
sas de mulher. A figura régia aponta para os céus. Os
súbditos obedecem, procurando nos deuses a resposta
para as doenças terrenas. Neste amuleto da Europa
Central, certamente usado pelo portador para escapar
à pestilência, condensa-se boa parte da percepção
sobre a doença e as suas causas desde a Antiguidade.
Desde que a pandemia de 2020 nos impôs um novo
quotidiano, vários autores debruçaram-se de novo sobre
as fontes clássicas, procurando pistas para compreender
o modo como a epidemia era processada na Antigui-
dade. A Praga de Atenas, no século V a.C., terá sido

AS PRAGAS


E AS PESTES NUNCA


NOS DEIXARAM


CONHECIMENTO E SUPERSTIÇÃO OPUSERAM-SE SEMPRE
EM MOMENTOS DE PERTURBAÇÃO DA SAÚDE PÚBLICA.
DA ANTIGUIDADE, CHEGAM LIÇÕES VALIOSAS.

GRANDE ANGULAR | HISTÓRIA E PANDEMIA


Esta máscara do século XVII ou XVIII foi
abundante na Europa Central. Era usada nas
visitas a comunidades já doentes e visava
proteger o portador. Tenta tapar todos
os orifícios de penetração das impurezas
e vinha, por vezes, acompanhada de per-
fumadores que produziam odores fortes
junto do nariz, na esperança de evitarem
o contágio.Nãoresultavam.

a primeira cujos relatos nos chegaram. Ocorreu
durante a Segunda Guerra do Peloponeso. Forçado
pelos acontecimentos militares a retirar, Péricles
concentrou a sua população no interior das
muralhas sem saber que um inimigo mais esquivo
já penetrara nas suas defesas. Os atenienses já
estavam minados pela doença. Tucídides, que
escreveu sobre o tema, conta que os “doentes
perdiam de imediato a esperança.
A sua atitude e espírito tendiam
a esvair-se e os doentes não
lutavam pela vida”.

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TODOS OS ARTEFACTOS FOTOGRAFADOS COM AUTORIZAÇÃO
DO MUSEU DA FARMÁCIA, ANF
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