National Geographic - Portugal - Edição 236 (2020-11)

(Antfer) #1

GOSTARIA DE ACREDITAR que Lin Andrews
tem razão quando diz que este é um
momento bom para ensinar, talvez não
tanto aqueles de nós que já têm pontos de vista
enraizados, mas aqueles cuja infância está a ser
formatada pelo coronavírus. Estas crianças
(a quem alguns já chamam a Geração C) poderão
crescer com menos paciência para a polarização
que obscurece as respostas de hoje. Vamos imagi-
nar que eles passam os seus anos de formação a
observar o processo científico de perto. E vamos
imaginar que, no final, os cientistas nos conse-
guem mesmo salvar.
Estamos agora no ano de 2040 e a Geração C é
toda adulta. De repente, surge uma nova pande-
mia. Baseados naquilo que aprenderam durante
a COVID-19, numa idade impressionável, estes
jovens adultos reconhecem a urgência do novo
surto, ignorando rapidamente quaisquer afir-
mações de que se trata de um embuste. Põem
a máscara, respeitam o distanciamento social e
vacinam-se assim que uma vacina é desenvol-
vida (e é desenvolvida rapidamente, porque os
cientistas também aprenderam algo entretan-
to). Seguem as recomendações dos peritos por-
que sabem ser a melhor maneira de se protege-
rem, não só a si próprios, mas também aos seus
vizinhos, de uma epidemia semelhante àquela
que acompanhou o seu crescimento e matou
centenas de milhares de pessoas.
A Geração C supera a nova pandemia com
um número relativamente baixo de mortos, ou
perturbações económicas, por ter aprendido al-
gumas lições fundamentais na infância: os con-
selhos de saúde pública baseiam-se na melhor
informação disponível, esses conselhos podem
ser mudados quando novas informações sur-
gem, a ciência é um processo iterativo no qual
não há vias rápidas.
Talvez nessa altura também já existam mais
trabalhadores nas profissões que nos acompa-
nharam durante a catástrofe do coronavírus:
mais médicos, enfermeiros e paramédicos; mais
especialistas em doenças infecciosas, epidemio-
logia, virologia e microbiologia, todos eles tendo
escolhido uma carreira que viram a funcionar no
seu melhor quando eram miúdos. Isto já acon-
teceu antes. Alguns dos cientistas actualmente
empenhados no combate ao coronavírus, como
Gregg Gonsalves e Howard Markel, acabaram
por fazer aquilo que fazem depois de terem aju-
dado a resolver a Sida, um mistério viral anterior
que nos matou de maneiras nunca dantes vistas.


Portanto, a pergunta a fazer é a se-
guinte: irá a Geração C reagir de outra
maneira, sem ser com “amnésia glo-
bal”, quando a próxima epidemia sur-
gir, como quase certamente surgirá?
É isto que eu ambiciono, não só para
recuperar a minha própria confiança,
entretanto beliscada, mas também
pelas minhas duas adoradas netas,
que teriam de viver a realidade que
mais me assusta.
Muito depende do que acontecer
nos próximos meses. Imaginem, a tí-
tulo meramente argumentativo, que
as curvas epidemiológicas que me têm
obcecado ao longo deste ano acabam
por jogar a nosso favor e que consegui-
mos regressar a uma situação relativa-
mente parecida com a normalidade.
Imaginem que são descobertos trata-
mentos que tornam a COVID-19 uma
doença de curto prazo e curável para
quase todos. Imaginem que uma vaci-
na é desenvolvida em breve e que uma
parte importante da população mun-
dial é inoculada. Se tudo isso aconte-
cer, por que razão não havemos nós de
emergir de tudo isto valorizando mais
as iniciativas científicas em todo o seu
esplendor confuso?
Tento agarrar-me a essa esperança,
apesar dos discursos desrespeitosos e
insultuosos dos políticos e dos zelotas
defensores da “escolha pessoal”, que
põem em causa tudo o que os cien-
tistas fazem. Tento convencer-me de
que, por vezes, os anjos da humani-
dade acabam por prevalecer. E que
temos o equivalente a um exército
de anjos (cientistas, educadores, mé-
dicos, enfermeiros, trabalhadores de
saúde) que tem trabalhado incansa-
velmente para garantir um final feliz
desde que a imagem fantasmagórica
do coronavírus, com os seus picos eri-
çados, começou a assombrar os nos-
sos sonhos colectivos.
É nesse final que tento acreditar.
Um final no qual emergimos de tudo
isto com uma apreciação renovada da
ciência como a melhor oportunidade
da humanidade para se salvar do so-
frimentoe damorteextemporânea. j

PRECISAMOS DE CONFIAR NA CIÊNCIA 25
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