National Geographic - Portugal - Edição 236 (2020-11)

(Antfer) #1
38 NATIONAL GEOGRAPHIC

A cidade gerava riqueza para alguns
e garantia uma vida decente a muitos
mais. Era uma cidade que produzia
carris e vigas para construir uma na-
ção próspera. No entanto, estava des-
tinada a ser a cidade com mais segre-
gação dos EUA, como Martin Luther
King, Jr. viria a dizer em 1963. E era
uma das mais poluídas.
Em mais nenhum sítio é tão visí-
vel a alma destroçada do capitalismo
como em Birmingham, no Alabama.
Em mais nenhum sítio é tão evidente
até que ponto as visões do futuro po-
dem ser importantes.
Desde Março, tenho vivido a pan-
demia na companhia da minha mu-
lher, natural do Alabama, numa casa
localizada a menos de dois quilóme-
tros da montanha Red. Quase todas as
noites escutamos, como um murro, as
desoladoras notícias nacionais. Todas
as manhãs, como outras pessoas afor-
tunadas nestes tempos de epidemia,
vou dar um longo passeio pelo bairro,
ouço as aves mais ousadas a cantar e
vou ver como está a horta. Não sou
de cá, mas afeiçoei-me a este sítio.
De certa forma, espero, dar-lhe mais
atenção poderá ajudar-me a perceber
melhor o mundo.
O meu trabalho na revista Natio-
nal Geographic consiste em reflectir
sobre o ambiente global. Quando a
pandemia surgiu, encontrava-me a
bordo de um navio, na Antárctida.
A nossa edição de Abril, dedicada
ao 50.º aniversário do Dia da Terra,
ia a caminho dos assinantes. Como
será a Terra no 100.º aniversário, em
2070? – era a pergunta dessa edição.
De regresso a Washington durante al-
guns dias, completamente desorien-
tado por 2020, peguei em “A Peste”,
o romance de Albert Camus escrito
em 1947. Estava a voar das livrarias,
explicava o jornal “The Guardian”.
De facto, os paralelos eram um pou-
co assustadores. “Eles continuavam
a fazer os seus negócios, planeavam
viagens, davam opiniões”, escreveu
Camus sobre os primeiros tempos da
negação em Oram, na Argélia. “Como

poderiam ter-se preocupado com algo como a
peste, que condena qualquer futuro?”
O nosso futuro, contudo, não está condenado.
Tornou-se simplesmente mais desconcertante e
aberto. Que efeitos de longo prazo terá a pande-
mia da COVID-19 sobre o ambiente? Qual será o
significado, para a atmosfera das nossas cidades
e o plástico dos nossos oceanos, de a floresta hú-
mida ter diminuído ainda mais e de o clima ter
continuado a aquecer este ano, estando já tão
quente que enormes parcelas da tundra siberia-
na arderam? (1) Irá a experiência da COVID-19
mudar, de forma duradoura, a maneira como
tratamos este planeta, no qual quase oito mil mi-
lhões de seres humanos lutam para sobreviver?
“A primeira revelação terrível desta crise sem
precedentes foi que todas as coisas que pare-
ciam separadas são inseparáveis”, escreve o
sociólogo francês Edgar Morin num novo livro
sobre as lições a retirar da pandemia. Fechados
como nunca estivemos, tornámo-nos mais aber-
tosdoquenuncaà possibilidadederepensaro
nossopercursoenquantoespécie.Elepartilha
connoscoumaexperiênciaexcepcional:Morin
tem 99 anose nasceusoba sombradapandemia
dagripede1918.
EmmeadosdeJunho,enquantoeuliao seu
livro,osEUAassistiamà quartasemanadema-
nifestaçõesapóso homicídiodeGeorgeFloyd.
Osmonumentosdaconfederaçãotinhamco-
meçadoa desabarnoSuldopaís,incluindoem
Birmingham.(2)Osapelosa uma“mudançasis-
témica”faziam-seouvirportodoo lado.Subita-
mente,a ideiadequeo sistemaqueprecisade
mudarvaidesdea maneiracomotratamosos
negrosà maneiracomotratamosa Terrae des-
deo governofederalaocoraçãodecadaumde
nóspareceuganharumsignificadoemocional.
Ascondiçõesclimáticasextremas,a pandemia
ea violênciapolicialfazem-nosganharmais
consciênciadomesmosentimento:vulnerabi-
lidade.Em2020,elatornou-seumaexperiência
quaseuniversal.

AS CONDIÇÕES CLIMÁTICAS EXTREMAS,
A PANDEMIA E A VIOLÊNCIA POLICIAL
TORNAM-NOS CIENTES DO MESMO
SENTIMENTO: A VULNERABILIDADE.

1.
A vaga de
calor na
Sibéria
“teria sido
impossível
sem as
alterações
climáticas
induzidas
pelos seres
humanos”,
concluiu um
grupo de
cientistas
em Julho.
2.
Ao remover
um obelis-
co, o autar-
ca de Bir-
mingham,
Randall
Woodfin,
desafiou
uma lei
do estado
do Alabama
de 2017.

38


NATIONAL GEOGRAPHIC
Free download pdf