National Geographic - Portugal - Edição 236 (2020-11)

(Antfer) #1
REPENSANDOONOSSOMUNDO 45

Ellen Davis, teóloga da Universidade Duke, re-
fl ectiu aprofundadamente sobre essa passagem.
“Quando ouvimos falar em ‘domínio’ pensamos
em ‘dominar’, uma imposição rígida, exercida
de cima para baixo, do poder humano sobre o
resto do mundo”, disse. Neste contexto, porém,
Ellen acha que a palavra hebraica radah tem um
signifi cado diferente. Sendo assim, a civilização
ocidental baseia-se em parte na interpretação
errada de um dos seus textos de base.
Não há dúvidas de que o Génesis conferiu um
estatuto especial aos seres humanos, por serem
as únicas criaturas à imagem de Deus, explicou
Ellen. Mas Deus abençoou as outras criaturas
antes de nos abençoar a nós e fê-lo da mesma
forma, ordenando-lhes que crescessem e se
multiplicassem. Seja qual for o signifi cado de
radah, pode não ser “aniquilar a bênção”, acres-
centou a minha interlocutora. E, no entanto, é
isso que estamos a fazer: erradicar mais uma es-
pécie enquanto subjugamos a Terra.
Em vez de “dominar”, Davis traduz radah
como “actuar com mestria entre as criaturas”.
Deus queria que fôssemos artesãos qualifi cados,
seguindo o seu exemplo ao criar-nos. Mas tam-
bém guardiões qualifi cados da criação.
A grande reviravolta seguinte na narrativa
ocidental aconteceu no século XVII, com o Ilu-
minismo, que libertou as nossas mentes do do-
mínio total exercido pelos textos antigos, mas
ampliou a ideia de que deveríamos dominar a
Terra. Uma das raízes do Iluminismo, segundo o
historiador alemão Philipp Blom, encontrava-se
na Pequena Idade do Gelo do século XVI, um pe-
ríodo tão frio que apareceu um icebergue ao lar-
go de Roterdão e não se registaram colheitas em
toda a Europa. (6) A religião não conseguia salvar
as colheitas e as comunidades questionaram a
sua autoridade. Procuraram então a aprendiza-
gem sistemática, através da observação e da ex-
periência. Olharam por isso para a ciência.
Foi assim que a ideia de progresso entrou na
civilização ocidental. E, desde o início, escreve
Blom, ela sempre foi considerada um sinónimo
de crescimento económico. Antes, o crescimen-
to fora lento e intermitente e assim se manteve
até à Revolução Industrial dos séculos XVIII e
XIX. Depois, impulsionado pela ciência e pela
tecnologia, bem como pelos recursos extraídos
das colónias, levantou voo.
No século XX, o crescimento económico tor-
nou-se um fi m em si. Durante a Grande Depres-
são, quando as economias entraram em colapso


6.
A Pequena
Idade do
Gelo já foi
associada
tanto a
erupções
vulcânicas
como à
actividade
solar. Essas
flutuações
naturais
não
estiveram
relaciona-
das com o
aqueci-
mento
global da
actualidade
7.
Se o
objectivo
for a
felicidade,
o cresci-
mento do
PIB não
consegue
comprá-la
nos países
ricos:
inquéritos
realizados
mostram
que a
felicidade
está
estagnada
há décadas.

e traumatizaram uma geração, um
economista americano chamado Si-
mon Kuznets desenvolveu uma for-
ma de medir o rendimento de cada
país. Aqui estava um número, único
e sedutor, associado ao crescimento
económico. Depois da Segunda Guer-
ra Mundial, o aumento desse núme-
ro, que viria a ser conhecido como
Produto Interno Bruto (PIB), tornou-
-se uma obsessão para os governos.
“Essa fi xação tem sido usada para
justifi car desigualdades extremas de
rendimento e riqueza associadas a
uma destruição sem precedentes do
mundo vivo”, escreveu a economista
britânica Kate Raworth.
Resumindo: o crescimento econó-
mico, enraizado numa interpretação
errada da Bíblia, ampliada pelo Ilu-
minismo e pela Revolução Industrial,
transformou-se na nossa história glo-
bal. Para Kate Raworth, nada disto é
positivo para nós.
Como seria se as economias do
mundo fossem geridas dentro dos
limites estabelecidos pela natureza?
Os defensores do crescimento sempre
tiveram um poderoso argumento mo-
ral: o crescimento económico tirou
milhares de milhões de pessoas da
pobreza e outros milhares de milhões
ainda precisam dos seus benefícios.
O problema não é o crescimento
ser todo negativo, diz Kate Raworth
no seu livro “Economia Donut”, pu-
blicado em Portugal em 2018. É óbvio
que alguns países ainda precisam
de muito mais, mas outros não. (7)
O crescimento já não deveria ser a as-
piração mais importante.
O donut exemplifi ca aquilo que,
para Kate, deveria ser o nosso ob-
jectivo. A parte de fora é o “tecto
ecológico”, as fronteiras planetárias
defi nidas por Johan Rockström e os
colegas. A parte de dentro são “os ali-
cerces sociais”: o alimento, a saúde, a
educação e outros factores essenciais
para a dignidade humana. A ideia é
permitir que todos os habitantes da
Terra possam ter uma vida digna sem
arruinar o planeta para todos.

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