12 | Valor| Sexta-feira,6denovembrode
V
iajanteincessante,ofrade domini-
canoeescritorCarlosAlbertoLibâ-
nio Christo,de 76 anos,foi obriga-
do ase trancar.Se oseu enquadra-
mentono grupode riscopara contrairo no-
vo coronavíruso colocouem confinamento,
sua trajetóriade vida permitiuconvertera
reclusãoem momentode reflexão. Traba-
lhar e meditarsão conceitosindissociáveis
paraintegrantesdeordensreligiosas.
Com“Diárioda Quarentena”(Rocco),
Frei Betto,comoéconhecido, chegouao
seu 69otítulopublicado.Há tempos man-
tém umamédiade três lançamentospor
ano.Seu livroéuma das primeirasrefle-
xões de um militantede esquerda(a dedi-
catóriaé paraGuilhermeBoulos,candida-
to do Psol àPrefeiturade São Paulo) sobre
a maiorcatástrofesanitáriaem cem anos.
O livro mostra uma curvade aprendizado.
Oautordeiníciodestacouaspectospositivos
do isolamento social. “A exigência vem em
boa hora”, escreve no dia 1da quarentena.
“Ingresso em uma prisão de luxo, nadamal
para quempassou quatro anos em outras,
abjetaseaterrorizantes.”FreiBettoficoupre-
sode1969e1973,acusadodecolaborarcom
aAção Libertadora Nacional (ALN). Descre-
veuastorturasaquefoisubmetidoemoutro
livro,“BatismodeSangue”.Anarrativamostraque aficha cai rapida-
mente.“O que estamosvivendoé muito
maisgrave do que se imaginava no início, e
os governos,de modogeral,não levaramis-
so muitoasério, tantoque anteciparama
flexibilizaçãodoisolamento”, disseFreiBet-
toementrevistaportelefoneaoValor.
Previsivelmente Frei Betto não economiza
críticasao presidente Jair Bolsonaro, aquem
acusade ter “prazerna morte alheia”, confor-
me disse na entrevista. “Ele flexibiliza leis de
trânsito, oque impacta diretamente ogasto
do SUS”, exemplificou.Mas em seu livro dire-
cionatambém ofoco das críticas àoposição.
Aindaque seja cáustico em relaçãoao presi-
dente, demonstraincômodo na pandemia
comoextremismoquegrassa“noBrasilatual,
marcado a ferroefogo pelo maniqueísmo”,
comoelerefletenodia20daquarentena.
“O problemanemresidena diferençade
concepções políticas.Situa-se na dificuldade
de manter controle sobreas próprias emo-
ções”, escreve. “A emoção é a estranha voz que
ressoadentro de nós eentorpecearazão.Não
costuma mandar aviso prévio. É um estopim
sempreencharcadodeálcool(...)Aumaúnica
palavra de desacordo oestopimseincendeia,
oequilíbrio se estilhaça eomonstro surgear-
madodeagressividade,vestidocomacouraça
domenosprezo,darejeiçãoedoanátema.”Oextremismo transbordou durantea
pandemiaem açõesde radicaiscontraigre-
jas católicase templos,comoaconteceure-
centemente nos EstadosUnidose no Chile.
Mas Frei Bettotomadistânciada denúncia
da cristofobia, mencionadapor Bolsonaro
na AssembleiaGeralda ONU. “A direitaquer
se apropriarda narrativareligiosaeempur-
rar todasas igrejascristãspara o nichodela.
Nadamaisconfortável para o autoritarismo
do que posarde defensorde Deus,pátriae
família,deslegitimandotodososoutrosseg-
mentosreligiososque não rezampela mes-
ma cartilha”, respondeuofrade,a uma per-
guntaespecíficaenviadaporWhatsApp.
No contexto de aversão tantoao radicalis-
mo quanto ao pragmatismoextremo, Frei
Bettocobra autocrítica da esquerda. “Eu faço
umaautocrítica dos equívocos que comete-
mos.Nós precisamosfazer umaautocrítica.
Abandonamosostrabalhosdebasenosmovi-
mentos populares, praticamente abandona-
dos nas últimasduasdécadas. Esse foi um es-
paçoocupado pelas igrejas evangélicas de
perfil conservador”, comentou no telefone-
ma. Em meioa umaesquerdaque bateu em
retirada da base da sociedade, há a açãodo
quechamade“militontos”.“O‘mi litonto’está
àfrente de todasaslutas, mas não se aprofun-
daemnenhumadelas.SOCIEDADE
Frei Betto lança“Diário daQuarentena”e criticapolíticos que
seapropriamdenarrativareligiosae deslegitimamquemnão
rezapelamesmacartilha.Por CesarFelício, deSãoPaulo