Valor - Eu & Fim de Semana - Edição 1039 (2020-11-06)

(Antfer) #1
Sexta-feira,6denovembrode2020|Valor| 25

LEO MARTINS/AGÊNCIA O GLOBO

SegundoPadura, de 65 anos, a tarefa doescritor é “contemplaro mundoe interrogá-lo”

LITERATURA


Uma


declaração


de amor às


palavras


Padura revela porque


contahistóriase porque


escolheunãosairdeCuba.


PorLuís AntônioGiron,


para o Valor,deSãoPaulo


A


imagemdoartistaisoladoé
um lugar-comumque Leo-
nardoPaduraintensificana
coletâneade artigos“Água
por Todos os Lados”(BoitempoEdito-
rial, 292 págs.,R$ 45). Nadamaisiso-
lado que o artistaem uma ilha, por si
só excluídapela situaçãopolíticaeco-
nômica.Aprimeiraimagemque vem
à mentedo leitoré Cuba,cuja capital,
Havana,foi ondeoescritornasceuem
1955 edeondenuncadesejousair,co-
mo acontrariar muitosde seus cole-
gas que se exilaram,comoReinaldo
Arenas(1943-1990),Guillermo Ca-
breraInfante(1929-2005)e Severo
Sarduy(1937-1993).
Paduranãoarredoupénemmesmo
dobairroondesecriou,Arenillas.Op-
tou pelo mesmodestinode clausura,
angústiae sufocação que experimen-
taramJosé LezamaLima(1910-1976),
AlejoCarpentier (1904-1980),Virgi-
lio Piñera(1912-1979) etantosou-
tros.Dopoema“A IlhaemPeso”, doúl-
timo,retirouotítulodo livro:“A mal-
dita circunstância da águapor todos
os lados/me obrigaasentar-meàme-
sadocafé./Seeunãopensassenaágua
que me rodeiacomoum câncer/teria
dormidoasono solto”. O ar boêmio
dos versosnão escondea negativida-
de de Piñera,exiladona própriaterra
pela burocracia castrista.Umainsula-
ridadesimbólicaedefato.
Paduraexplora com elegância a


“malditacircunstância”de viverem
um regime fechado.Para tanto,
transformaisso em paradoxochar-
moso:um autorexiladono próprio
país e, ao mesmotempo, motivo de
orgulhoda culturacubanaatual. É
uma espécie de dissidentedoméstico
que criticaos errose satirizaas lutas
culturaispelasquaisa ilha passou.
Evitandooconfronto diretocom as
autoridades, ele mantémaintegrida-
de intelectuale a liberdade de expres-
são, até porqueo regimefoi obrigado
a se liberalizarao longodos anos,ao
pontode,em2011,concederaoscida-
dãos odireitode ir evir, eassim viajar
e se exilar. Numcuriosoparadoxo, Pa-
duranão cedeuàtentaçãode morar
no exterior—como na Espanha,onde
tem cidadania—eassimconsolidoua
imagemdeautorcosmopolita.
Ele exploraa condiçãoem 19 “en-
saiose obsessões”, comodiz o subtí-
tulo da versãoem espanhol,editados
pela mulher, ajornalistaeroteirista
LucíaLópezColl,divididosem três
blocos:oisolamentodo artista,auti-
lidadedo romance e perspectivasda
literaturacubana.
Tudo gira em tornodele próprioe
da cidadenatal.“Havanaé meu mun-
do”, diz PaduraaoValor.“Sou um es-
critor, um homemde Havana.Ees-
crevosobrea cidade.Mas isso não

querdizerque eu seja prisioneiro de-
la. O mundoégrande,e as boashis-
tóriaspodemestarem qualquerpar-
te. Mas seguramente meusromances
saemde Havana,Cuba,e mesmoque
avancempor outrosterritóriosgeo-
gráficosou urbanos,semprevoltam
a Havana,a Cuba.”
Umexemplodeuniversalidadeéasé-
rie de quatro romances policiais, intitu-
lado “AsQuatro Estações”, escrito entre
1991 e1998, que deu origem amais
narrativas.Seuprotagonistaéodetetive
havaneiro Mario Conde.Diferentemen-
te do anti-heróido romance “noir”
americano, onde foi parcialmente for-
jado, Condeéum investigador saudo-
sista, apegado às tradições de sua cida-
deenadaafeitoàviolência.
Éumtipo folclórico, donodeumse-
bo de livros no centro da cidade. Não se
preocupa em vender. Éirônicoedes-
provido de utopias, muitomenosaso-
cialista Seu traço marcanteéinvestigar
mistérios e enigmas facilmente decifrá-
veis,comoumpretextopararealizarex-
cursões por territórios pouco explora-
dosdahistóriacultural.
Padurase beneficiouda famain-
ternacionaldo gêneropolicialcuba-
no, surgidono iníciodos anos1970,
e se projetou comoautorde entrete-
nimento. Ganhouadaptaçõesde su-
cessopara o cinemae televisão e uma

sériena Netflix,“QuatroEstaçõesem
Havana” (2016),com roteiroadapta-
do por LópezColl.
Mas osucessomaior,que lhe deu
reputaçãomundial,ocorreuem2009,
com a publicaçãodo romance “O Ho-
memque Amava os Cachorros”, certa-
mentesua narrativamaiselaborada.
Trata-sede uma ficçãohistórica sobre
o militante comunistacatalão Ramón
Mercader(1931-1978),que, amando
de JosefStálin(1878-1953)assassi-
nou LeonTrótski(1879-1940)agol-
pes de picareta, em sua casa em
Coyoacán,noMéxico.
A coletâneareserva um blocopara os
bastidoresda realização do romance.
Paduraesmiúça a pesquisa econta his-
tóriaspitorescas. Em 1977,por exem-
plo,topoucomMercaderemumapraia
em Havana, ondeestava exilado, pas-
seando seus dois cães da raça borzol,de
origemrussa, nadaadaptadosaoclima
da ilha. Se aideia era passar despercebi-
do,seus cães estragaramoplano,pois
chamaram tantoa atenção que Merca-
der foi obrigadoacedê-los para uma
participação especial no filme“Los So-
brevivientes” (1979), do diretorTomás
GutiérrezAlea(1928-1996).
Aseçãomaisinteressanteéafinal,em
que Padurainvestiga paraque (e não
por que)romancessão escritos. Cita
Gustave Flaubert (1821-1880), que, em
carta àamiga George Sand
(1804-1876), afirmaque romances ser-
vem para revelar “a almadas coisas”, ou
seja, atingir o âmagoda condiçãohu-
mana,algo que nem aciêncianem afi-
losofiaconseguemexpor.
Paduraabraçaamissão.Segundo
ele, atarefado escritoré“contemplar
o mundoe interrogá-lo”. “Nãoé ne-
cessáriodar respostas”,diz, “massim
revelarque nos perguntamossobre
muitascoisassobrenossassociedade
e que, em geral,essasperguntasex-
pressam nossas inconformidades
pessoaise sociaisporque,ao fim e ao
cabo, somoscidadãos comoos de-
mais,só que nos dedicamosa isto, a
escrevereadeixar nossasperguntas
por escrito.”
Mesmocom águapor todos os lados,
asituaçãogeográficanãoéumobstácu-
lo a quemamaaspalavras. De acordo
com Padura,o escritor tem odever de
ser crítico com o que acontece a seu re-
doreestarconectadocomomundo.
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