Valor - Eu & Fim de Semana - Edição 1039 (2020-11-06)

(Antfer) #1

26 | Valor|Sexta-feira,6denovembrode2020


U


ma dúvidaque atormentaos es-
critoresquando a ficçãoparece
superada pela realidade: valea
penaescreveralgumacoisaque
não fiquecoladaà realidade?Afinal,oBra-
sil semprepareceuumaobrade ficção. A
novidade éque o mundointeirofoi engol-
fado pelosacontecimentos extraordinários
de 2020,o que de certaforma até potencia-
lizoua loucurabrasileira.
Aconteceque o Brasilvem tocandoabo-
la da fantasiadesde2013,só paraficarna
igniçãoinicialdos movimentosde junho
daqueleano.Pois amaioriados brasileiros
deveter pensado, diantede tudoque este-
ve em jogonaquelemês,que opaís iria fi-
car de cabeçapara baixopor algumtempo.
Mas não que seriapor tantotempo, e com
tantacoisaruimacontecendo.
Oescritore colunistadoValorMichel
Laub,sempreàs voltascom oreal, teve que
encarar, comoqualquerartista tocadopela
realidade,um mundo novoem convulsão, e
éisso que ele veio tentandodomarnos li-
vros dos últimosanos.“O Tribunal da Quin-
ta-Feira”,lançadoem2016, éumdessesro-
mancesvoltadospara os acontecimentos.

Nele,a homofobia,oassédio,avi olênciaea
internetcomojuízaeexecutorarevelaramo
quehaviadeassustadornoespíritodaquela
época. Agora,com um novolivro, “Solução
de Dois Estados”(Companhia das Letras),o
escritoratacaoutravez, coladoàrealidade
de2018,napré-vitóriadobolsonarismo.
Éumlivroincômodo.Nelevemembutida
adivisãodopaís,comumacargaassustado-
radeviolênciaverbalefísica,acentuadapor
uma técnicanarrativade primeira.Oescri-
tor assumeas diversasvozesde seus perso-
nagens, entraem suas pelesedestilaos pio-
res venenos, aindaque tenhacomeçado
comaideiadefalardoperdão.
Olivro começou a ser escritono começo
de 2017.Então,oautor teve um bloqueio.
“Retomeium poucodepois, achoque no
iníciode 2018,mas consideroque tudoé
um processo só”, afirmaLaub.“Em 2017,
eu achava que era precisodar um tempo
porque oBrasil estava mudandomuitora-
pidamente,eessesemprefoi um livroque
queriaenfrentar o desafio de falar da reali-
dadebrasileira.”Earealidadebrasileirajá
desenvolviaas sementesde ódio que come-
çarama pipocarjá em 2013.

Não à toa, “Soluçãode Dois Estados”ex-
põe uma brigafratricida,centradaemdois
irmãosopostos:um sujeitosarado, envolvi-
do com negóciosde fitness,eumaartistade
130Kg. Há um outrovérticeno triângulo
em que a históriase equilibra, uma cineasta
alemãrodandoum documentáriosobrea
violênciadeoutrospaísesalémdoBrasil.
Para chegaraí, o escritor precisou romper o
bloqueio inicial.“As coisas maisconjunturais
[de Bolsonaroàcovid] não alteravam muitoa
essênciadaquiloque eu queria ejá tinhaco-
meçadoanarrar”, diz oescritor.“Algo que eu
não sabiabem ondeterminaria, mas cujo im-
pulsoinicialjáestavalá.Nocaso,umapergun-
tasimples, sobreaviabilidadeounãodaideia
deconciliaçãooudeperdãonopaís.”
Tudo vem colocado na boca dos persona-
gens. Não há atmosfera, não há descrições,
não há outros recursos narrativos. Tudo se
concentra na violênciados depoimentos,
marcados por jargões do audiovisual que
funcionam como capítulos: “Material
Pré-Editado”,“Extras/MaterialaInserir”, “Ma-
terial Bruto”eassim por diante. Entreum e
outro, averborragia de Raquel eAlexandre,
temperadaspelas entradas da diretora ale-

LITERATURA


Em“SoluçãodeDoisEstados”,MichelLaubescancara a


divisãopolíticadoBrasilatual,comumaescritacarregada


deviolência.Por CadãoVolpato, para o Valor,deNovaYork


e amarelo


Ódio em verde

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