Valor - Eu & Fim de Semana - Edição 1039 (2020-11-06)

(Antfer) #1
Sexta-feira,6denovembrode2020|Valor| 27

Laubtentacapturar
o espíritodotempo
pormeiodafala dos
personagens
principaisde
“SoluçãodeDois
Estados”: doisirmãos
opostos e uma
cineastaalemã

mã,elatambémmetidaatéopescoçonocal-
dobelicosoquevaisendoproduzido.
Comonestapassagem(“oquei”, expres-
são que vive na bocado presidenteJair Bol-
sonaroebolsonaristas,aparecepor todola-
do no livro):“Você não quer usar esse exem-
plo, oquei.Eu falei do seu maridoporque
vocêtocounoassunto,masimagineoutro
casal.Duaspessoasque fazemsexo papaie
mamãe.Umdia vaza uma cenade sexo dos
dois,pensenavergonhaqueosdoissentem,
se e ́ que sentem,a mulher pelada,oho-
mempelado,mas o que os dois estãofazen-
do de tão particular? De tão antissocial?O
que esse ato revelade tão horrível,social-
mentehorrível,nelesmesmose em quem
estáassistindo?”.Eporaívai.
Acarpintariadoromanceéconstruídaem
cimadessesdiscursosdiretos,que lembram
alinguagemdo teatro.“‘So lução’ exigiu que
eu me pusesseno nívelintelectual emoral
depersonagensbemdiferentesdemim.Isso
já éuma novidadeem relaçãoao ‘Tribunal’,
por exemplo, no qual eu não estava no nível
moraldonarrador,masnointelectualeues-
tava (a estrutura de pensamentodaquele
personagemésemelhanteàminha).”


Ao exporum coro de vozes contemporâ-
neas,Laubescolheuum caminhodifícil. É
um artistatentando capturar oespíritodo
tempopela bocade seus personagens(e o
tempobrasileiroparececadavez maisconta-
minado pela violência temperadade todas as
formas). Significou trabalhar à exaustãouma
espécie de partiturarústica contemporânea,
algo que precisa de um ouvido muitoapura-
do,além de resistente. “Por isso eu acabo le-
vandoquasequatroanos,comoneste caso,
paraescrever um livrorelativamente curto”,
diz Laub.“Reescrevomuito,mudo coisas es-
senciais e tudo, até chegar a algo que inicial-
menteeu não sabiabem o que seria.”
Tambémera preciso lidar com a radicalida-
de do discurso. “Personagenscomoessessó
podemser verossímeisse tiverem uma urgên-
cia na exposição de suas convicções. Eles não
podemperder muitotempocom ambienta-
ções ecoisasassim porqueeles têmmuita rai-
vaerancornomomentoquenarram.Ӄo que
oromanceconseguecapturarmuitobem.
Dá para dizerque há uma linhaevolutiva
no conjuntoinquietoque são os livrosde
MichelLaub,de 47 anos.Qualquerartista
que queiraencarararealidadeque vive pre-

cisa correrriscos.O notável em “Solução de
DoisEstados”éoincômodoque oescritor
conseguearticularsem perdera noçãode
equilíbrio—nocaso,comasmelhoresferra-
mentasdoofício.Porqueeleestánoauge.
O Brasil de hoje é uma fonteriquíssimade
desastres edesesperança, eos irmãosdestero-
mance—que aliás deve seu títuloao projeto
políticode coexistência pacífica de dois povos
antagônicos, israelenses e palestinos —que-
bramopau daquele jeito familiar aque fica-
mosacostumadosnosúltimosanos.Masaívai
umaperguntapueril,baseadanapropostaini-
cial de falardo perdão,paraselar aentrevista:
“Vocêachaqueahumanidadetemjeito?”.
“A humanidade,eu não sei”, responde
Laub. “Masootimismo da açãotem dessas
coisas:eu me sintomelhorhoje do que me
sentiaem 2017,apenaspor ter aceitadoum
desafioetrabalhadopara superá-lo. Talvez
seja essa a felicidadepossívelao alcancede
quemescreve.O resto, inclusive a vida pes-
soal,jánãodependesódagente.”
“Soluçãode DoisEstados”já é um bom
romanceparase pensara respeitodo que
foihánãomuitotempo,doqueestásendoe
doqueseráfeitodestepaís.■

ANAPAULAPAIVA/VALOR
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