Valor - Eu & Fim de Semana - Edição 1039 (2020-11-06)

(Antfer) #1
Sexta-feira,6denovembrode2020|Valor| 29

Livro dajornalistae
escritora AnaPaula
Araújoexigiuquatro
anosdepesquisas,
viagenspeloBrasile
cercadecem
entrevistas,de
vítimasa criminosos,
dejuízesa médicos

Ilha do Marajó, no Pará. Apósdenúnciade
vizinhos,o pai foi presopor abusarde suas
duasfilhas,umade15,aoutrade16anos.
Logoohomemfoisoltoevoltoumaisvio-
lento. As adolescenteseramsurpreendidas
durantea noitecom opai alisandoos seios
delas.Os estuprosaconteciamno próprio
quartodas meninas—oirmão maisvelho,
na camapróxima,fingianão ver —ou em
longospasseiosde canoa,nos quaiseram
obrigadasaacompanhá-lo. Ohomemnão
usava camisinha, tampoucoas meninasto-
mavam pílulaanticoncepcional. Eramim-
pedidasde ir aqualquer lugarsem sua pre-
sença.“Os pais abusadores têm uma sensa-
ção de possemuitogrande”, diz. “Acham
quesãoosdonosdasfilhas.”
Houveaindaumanovaaudiência do ca-
so, mas o homem,reincidente,foi absolvi-
do.As meninas voltaramatrásenegaram
tudo,provavelmente,diz a jornalistaque
acompanhouo caso de perto,pressionadas
pelamãe.Sozinha,comcincofilhospara
criar, sem dinheironem trabalho, a mulher
preferiufazervistagrossaparaos abusos
do maridoa ficarsó. Aquiloque as meni-
nas passavam era parecidocom outrosca-
sos da vizinhança.
“O crimeé do criminoso, não me cabe


culparas mães,mas aquelasque saemem
defesade suas filhassão fundamentais e fa-
zem toda a diferençana vida dessasvítimas
no futuro”, afirmaAna Paula.
As pessoasatacadaspor conhecidosge-
ralmentesofremameaças,são as maisame-
drontadaseas que maisse calam.Amaioria
fica em silêncio pelasmesmasrazões:ver-
gonha,culpaedesconforto de se expor.Es-
tima-seque 9 de cada10 pessoasviolenta-
das não denunciem.Aquelasque criamco-
ragemesbarramcom o médicoque se recu-
sa atendê-la,o descasodo promotorque
desconfia,do policialque debochaou do
juizqueinvalidasuapalavra.Comoéraroas
oitivasseremcoordenadas,a vítimatem
que repetiralgumasvezespormenoresdo
estupro,oqueéconstrangedor.
A vítimasofreaviolênciaduasvezes:do
estuprador, de quemde fato não espera
nada,e dos profissionais,teoricamente al-
çadosparaprotegê-la.“É umacorridade
obstáculos,um dramaenorme”, diz Ana
Paula. “Perguntam:‘Tem certezade que
querdenunciar? Porquevocêpodeacabar
com avida dessehomem’, como se a vida
dele,e não a dela,devesse ser protegida.”
Outrocaso éode Jéssicaetrês amigas,to-
das entre15 e 17 anos,que se reuniramde-

poisdaaulanacasadeumadelas.Comeram
pizza,fizerambrigadeiroe,enquantoodoce
esfriava na geladeira,decidiramtirar fotos
em um morropróximo.Elas foramagredi-
das e violentadaspor quatroadolescentes e
um homeme jogadasde um penhascode
mais de 10 metrosde altura,em Castelo(PI).
Umadelasmorreu.Odoce ficouintacto,
nuncafoi provado. Um dia, chegandoda es-
cola,Jéssicarecebeualigaçãodeumpromo-
tor. “E vocêsforamlá realmentesó para tirar
foto?”,perguntouele,emtommalicioso.
“Os agentespúblicosem geraltêm essa
mentalidade muitomachista”, afirma ajor-
nalista.Até 2005,por exemplo, alegislação
definiacrimesexualusandootermo “con-
junçãocarnalcommulherhonesta”. “Em
2009,houveuma mudançana lei que adei-
xoumaisabrangente.Antes,estuproeraen-
quadradoapenasem casode penetração
vaginal”,contaAnaPaula.Sexoanalforçado
eapenetraçãocomobjetoseraconsiderado
atentadoviolentoaopudor.Ouseja, violen-
tar homense mulherescomsexoanal ou
oraleramenglobadosnessacategoria.
“Essecrimedeixoude existir, etudo pas-
sou a ser consideradoestupro. Em 2018,
acharamque apena era muitopesadapara
algunscrimesde menorpotencialofensi-
vo, eincluíramum termomaisespecífico
—afigurada importunaçãosexual.”
Aos18anos,quandoestavanotransporte
público, a jornalistafoi umadas vítimas
dessecaso.Ao voltarda faculdadetardeda
noite,sentiualívioaoencontrarumassento
livre no fundodo ônibus.Pensou:“Quesor-
te. Hojevou encostaracabeçana janelae
dormirum pouquinho”. Acordoucoma
mãodeumsujeitoapalpandosuacoxa.
“Foi uma decisão difícil, até ondeme ex-
por. Guardooutroscasosmeus,maisdo
que conteino livro”, afirmaa jornalista.
“Foi umaescolhadelicada.Leveiem conta
ofato de que eu não queriaescreverum li-
vro sobremim.Ao mesmotempo, não que-
ria que achassemque não sei sobreo que
estoufalando.Então, opteipor esse caso
do transportepúblico.”
Foram quatroanosde pesquisas,viagens
pelo país e cercade cem entrevistas,de víti-
mas acriminosos,de juízesamédicos.Co-
mo manteveotrabalhona televisão, ajor-
nalistadispunhaapenasdos finaisde se-
manae feriadosparadar contado recado.
Muitasvezes,emendava umasériede en-
trevistasdolorosas,uma atrásda outra.
“Foi difícil concluir,duro dar de cara com
minhasprópriaslembrançaseperceberco-
mo o abusosexual,ou a ameaçadele,faz
parteda vida de todasnós. Esperoter pres-
tadoumbomserviço”, afirmaAnaPaula.■

LEO AVERSA/AGÊNCIA O GLOBO
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