Clipping Banco Central (2020-11-22)

(Antfer) #1

Crônica da Cidade


Banco Central do Brasil

Correio Braziliense/Nacional - Cidades
domingo, 22 de novembro de 2020
Cenário Político-Econômico - Colunistas

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Autor: por Alexandre de Paula
alexandredepaula.df@dabr.


Cenas da praça


O homem brusco me pergunta se sei onde meu avô
está. "Não", digo com a voz pálida e entro logo em casa.
Gosto desta camiseta preta porque esconde um pouco
as partes sobressalentes do meu corpo. Encho meu
cabelo de gel. Brilha muito. Tenho pressa, mas minha
irmã faz aniversário.


Depois do parabéns, ataco o cachorro-quente sobre a
mesa, com a violência de quem come por necessidade
e desespero. Não tenho tempo para o bolo. Preciso ir
logo. E vou. Sempre que chego à praça, penso em
como tudo isso já foi mais cheio e em como parece que
o centro do Cisco virou um refúgio de adolescentes
bêbados que dirigem carros barulhentos. Tenho 14
anos.


Eu a vejo de longe. Estou com medo, mas continuo
andando (afinal, quando não estou com medo?). O
vestido verde e cheio de ondas é lindo. Talvez esta


camiseta com armas e rosas seja um equívoco, rock
and roll demais para os olhos claros e castanhos dela.
Talvez toda esta narrativa aqui seja fútil e pueril.

Meu avô grita, e eu, por fim, descubro, com raiva, onde
ele está. O homem brusco o encontra antes de mim.
Tenho sorte. Não ando mais tão rápido. Simulo uma
ligação no celular e atendo, como se falasse com um
amigo. Será que as pessoas aqui sabem que não há
sinal para esse tipo de aparelho que tenho? Espero que
não. Estou suando um pouco, e meu cabelo brilha
menos.

Caminho sobre os paralelepípedos e conto cada um
eles. Lembro que minha mãe sempre diz que preciso
ajeitar a coluna. Noto que ando meio curvado e tento
me acertar. Não dura muito. Vou brincando com os
olhos voltados para baixo. Preferia que ninguém me
visse. Se só ela notasse, eu não precisaria do resto e
poderia, quem sabe, até ignorar que esta camiseta, no
fim das contas, não caiu bem e me imaginar no ápice de
um filme clichê em que caminharia lentamente para os
braços dela, enquanto violinos tocassem versões
cafonas de clássicos do hard rock.

Ela ainda está sorrindo. Daqui, eu posso vê-la, mas não
tocá-la. Meu amigo está sentado no banco. Digo "oi".
Ele fala sobre o vídeo do Yngwie Malmsteen, que
terminou de baixar ontem, depois de 14 dias sofrendo
com a velocidade da internet discada. Ele quer me
convencer que o guitarrista sueco revolucionou a
música e que o estilo neoclássico é o que há de melhor.

Não estou muito interessado na escala menor
harmônica tocada em uma velocidade absurda nem em
adágios de Bach repetidos em guitarras
hiperdistorcidas. Hoje, não. Respondo que prefiro o
David Gilmour, sempre preferi. Ele ri de mim e diz:
"Mano, tu é sempre muito lento, né?". E me dá um tapa
na nuca, enquanto vejo, de relance, o resto do vestido
verde e cheio de ondas entrando num carro barulhento
e indo embora para não mais voltar.
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