Clipping Banco Central (2020-11-22)

(Antfer) #1

O apagão das canetas e a perversão da política


Banco Central do Brasil

O Estado de S. Paulo/Nacional - Economia
domingo, 22 de novembro de 2020
Banco Central - Perfil 2 - Tribunal de Contas da União

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Autor: Rolf Kuntz


Votos custam dinheiro, muito dinheiro, no Congresso
Nacional. Por isso o governo precisa gastar para
ampliar sua base e conseguir aprovação de projetos.
Quem diz isso é o líder do governo na Câmara,
deputado Ricardo Barros (PP-PR). Diz em público, e
suas falas têm sido noticiadas. Na terça-feira ele acusou
órgãos de controle de causar um "apagão das canetas",
impedindo a liberação de verbas para obras de
interesse de parlamentares. A discussão continuou e na
quinta-feira já se falava, em Brasília, de negociações
com o Tribunal de Contas da União. A ideia era obter
autorização para empenhar recursos, neste fim de ano,
para investimentos em 2021. Tudo foi dito abertamente,
como se fosse normal e saudável, numa democracia,
abrir o cofre em troca de apoio parlamentar.


Nenhum sinal de hipocrisia, até aí. A propósito, a
hipocrisia, repetia-se em outros tempos, lembrando La
Rochefoucauld, é a "homenagem que o vício presta à
virtude". Pressupõe-se no hipócrita, portanto, alguma
noção de virtude, assim como algum respeito aos
costumes valorizados numa sociedade. A fala aberta,


sem subterfúgios, seria um sinal ainda mais certo da
reverência àqueles valores. Será possível, no entanto,
sustentar esse pressuposto no caso dos protestos
contra o "apagão das canetas"? É duvidoso. Os
envolvidos podem ter simplesmente usado em público,
sem autocensura, a linguagem própria do seu meio e
dos seus costumes.

O apagão, nesse caso, foi luminoso. Tornou mais clara,
até ensolarada, a natureza da relação entre o Executivo
chefiado pelo presidente Jair Bolsonaro e a sua, por
assim dizer, "base de apoio". Esta expressão é
imprópria, embora usada no dia a dia, e também isso
pode ter ficado mais visível para os menos atentos. Não
se trata, de fato, de uma base, mas de um reservatório
de votos, uma fonte acessível de acordo com as
condições e as cotações de cada momento.

Outras práticas, diferentes da negociação de votos por
verbas, são mais frequentes em outras democracias,
especialmente naquelas onde os partidos têm cores
mais definidas. Há acordos de conveniência, assim
como conchavos e jogadas eleitorais, mas é possível,
em geral, associar a votação a princípios partidários e
ideológicos. Embora avariado, o Partido Republicano
ainda é reconhecível. Nem o presidente Donald Trump
conseguiu desfigurá-lo totalmente e convertê-lo em
instrumento de seu populismo nacionalista, neofascista
e, sobretudo, personalista.

Sem censura, a fala aberta revelou também, no episódio
do apagão das canetas, a inversão de noções
fundamentais da vida política. Segundo o líder Ricardo
Barros, "o deputado quer uma obra", isto é, quer
"mostrar serviço a seus eleitores". O governo, portanto,
deve entregar o benefício ao congressista, para deixá-lo
satisfeito. "Precisamos estabelecer a relação
republicana que precisa existir entre parlamentar e
governo", concluiu o líder, segundo relato do Estadão.

Esse é um conceito muito particular de republicanismo.
"Relação republicana" designa, em sentido próprio, algo
muito diferente de um intercâmbio desse tipo, isto é, da
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