Clipping Banco Central (2020-11-22)

(Antfer) #1

O gênio do inconfessável


Banco Central do Brasil

Folha de S. Paulo/Nacional - Opinião
domingo, 22 de novembro de 2020
Cenário Político-Econômico - Colunistas

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Autor: Ruy Castro


rio de janeiro "Acendo um cigarro. Ou por outra: não
acendo um cigarro (o Dr. Stans Murad não pode saber
que ainda fumo)". Isso é Nelson Rodrigues em uma de
suas crônicas no Globo e que considero um dos
maiores trechos de crônica que já li. Nelson, aos 60
anos, fora proibido de fumar por seu cardiologista e,
com naturalidade, contou o que estava fazendo ao
escrever. Só aí se lembrou de que, no dia seguinte, o
médico o leria no jornal. Mas, em vez de apagar o
cigarro e a frase, entregou-se com hilária sinceridade.


As crônicas de Nelson Rodrigues eram diárias, sempre
na primeira pessoa, e tinham um título geral de "As
Confissões". Porque era isso o que elas eram -
confessionais ao absurdo. Em outra, contou que, certa
noite, ao chegar em casa vindo do trabalho, foi
informado por sua mulher, Lucia, de que Guimarães
Rosa morrera. "De quê?", perguntou. "Enfarte", ela
respondeu. Ele então fora para a varanda e, com a
cidade iluminada aos seus pés, descobriu-se
intimamente satisfeito pela morte de Guimarães Rosa.


Tinha "inveja literária" de Guimarães Rosa, admitiu.
Rosa não podia espirrar sem ser chamado de gênio, ao
passo que ele, Nelson, só levava pancada das platéias,
dos críticos e da censura. Mas Rosa morrera e ele
estava vivo, pensou. E só aí se deu conta da
monstruosidade de tal sentimento. Como pudera pensar
aquilo? De repente, convertido, admirou em Rosa o
homem que dedicara sua vida a construir uma obra,
indiferente aos apelos externos, políticos ou de qualquer
ordem. O artista total.

Quem, além de Nelson Rodrigues confessaria coisas
assim? Mas era o que ele fazia todos os dias, ano após
ano: expor-se pelos jornais, ao mesmo tempo em que
reservava o inconfessável do ser humano para seu
teatro - que, hoje, ninguém mais discute, também é obra
de gênio.

No dia 21 de dezembro, serão 40 anos da morte de
Nelson Rodrigues.

O Brasil não produziu outro.

Assuntos e Palavras-Chave: Cenário Político-
Econômico - Colunistas
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