Clipping Banco Central (2020-11-22)

(Antfer) #1

Não se protege mulheres sem ouvi-las


Banco Central do Brasil

Folha de S. Paulo/Nacional - Poder
domingo, 22 de novembro de 2020
Cenário Político-Econômico - Colunistas

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Autor: Gabriela Rondon e Ana Gabriela Ferreira


Desde agosto, uma norma inconstitucional e ilegal
prejudica a atenção a vítimas de violência sexual neste
país. Trata-se da portaria2.282/2020, do Ministério da
Saúde, depois substituída pela quase idêntica portaria
2.561/2020, que obriga profissionais da saúde a reportar
à polícia os casos de mulheres que buscam o aborto
legal após um estupro.


Diferentemente do que afirmou o secretário de Atenção
Primária à Saúde, Raphael Câmara Medeiros Parente,
em artigo publicado nesta Folha ("Uma portaria para
proteger vítimas e punir estupradores"; 11.nov.20), a
portaria não é "necessária". Ao contrário, extrapolou as
competências do Ministério da Saúde, criando
obstáculos ao acesso ao aborto a vítimas de crime tão
cruel.


O secretário diz que a lei 13.718 / 2018 obrigou essa
alteração. Essa lei, de fato, tornou incondicionada a
ação penal para os crimes contra a dignidade sexual.
Isso significa que o sis- tema de Justiça não precisa do
consentimento da vítima para iniciar uma ação contra o


agressor. No entanto, a regra só se aplica ao Ministério
Público, não se estende aos profissionais da saúde.
Caso houvesse essa previsão, seria violado o direito e
dever de sigilo das informações confidenciadas no
acesso à saúde.

O direito ao sigilo é inerente à proteção da dignidade,
intimidade e vida privada das pessoas que buscam
cuidados médicos. Nos casos de estupro o sigilo é
indispensável, pois é o que garante os cuidados
emergenciais em saúde de meninas e mulheres que
temem buscar a polícia.

Esse temor infelizmente não é infundado. Segundo o
último Atlas da Violência, 76% das vítimas de violência
sexual foram estupradas por parente ou amigo da
família, mais de dois terços na própria casa - e por isso
temem a retaliação, a vergonha e a exposição que
podem decorrer da denúncia.

Há ainda o temor da exposição judicial, frequente em
registros de violência sexual, como ocorreu no
repugnante caso Mariana Ferrer. Por isso, o número de
denúncias é inferior ao total estimado de casos de
estupro. Pesquisa do Instituto Patrícia Galvão mostra
que apenas 29% das pessoas entrevistadas consideram
que a polícia está habilitada a atender a vítimas desse
crime.

A obrigatoriedade da denúncia é, portanto, um meio
ineficaz que não protege a vítima. Na realidade, a
obrigatoriedade de comunicação policial poderá afastar
as mulheres dos serviços de saúde, resultando em
maior subnotificação. Por essa razão, mais de 2.200
profissionais de saúde publicaram nota de repúdio às
novas regras. Argumentam que, de modo a resguardar
o cuidado da vida e da saúde, não é ético comunicar
fatos sem autorização expressa das vítimas.

Isso não significa que a Justiça não deva ser acionada
para responsabilizar agressores. Mas não se pode
condicionar o acesso à saúde a uma denúncia
obrigatória à revelia das vítimas. As mulheres e meninas
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