Clipping Banco Central (2020-11-22)

(Antfer) #1

DORRIT HARAZIM - O Brasil tem caráter?


Banco Central do Brasil

O Globo/Nacional - Opinião
domingo, 22 de novembro de 2020
Cenário Político-Econômico - Colunistas

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'Quando crimes se empilham, eles se \J tornam
invisíveis, escreveu Bertolt Brecht às vésperas da
Segunda Guerra. O dramaturgo alemão referia-se a
crimes do Terceiro Reich que apenas pressentia. A
extensão do horror só ficou explicitada quando os
campos de concentração foram escancarados. E
fotografados. Naquele tempo, 75 anos atrás, o telefone
celular ainda estava longe de fazer parte da mão
humana. Hoje tornou-se extensão do nosso existir, e a
realidade parece só existir se houver seu comprovante
instantâneo, de preferência com imagem em
movimento. Um grande salto de engenhosidade,
progresso tecnológico, totem de um futuro sem
fronteiras. Ficou faltando aprimorar o essencial: o
próprio bípede humano, ainda tão imperfeito e cego.


O assassinato do cidadão negro João Alberto Silveira
Freitas na garagem de um supermercado Carrefour
gaúcho, à noite, tinha tudo para permanecer
obscurecido. Só deixou de depender de versões
dissonantes, querelas circunstanciais ou imprecisas,
porque alguém gravou acena esclarecendo a natureza
do crime pelo celular. Assistimos assim a um
assassinato a sangue quente, primitivo, sem a


intermediação sequer de uma arma. O homem negro já
subjugado foi espancado na cabeça e rosto até lhe faltar
vida. Sua morte teve por testemunha a esposa impedida
de socorrê-lo, uma penca de seguranças e funcionários
do Carrefour, além da platéia global que foi se
inteirando do fato. No chão da garagem respingada de
sangue, sobrou de João Alberto um solitário chinelo de
dedo.

Não foi, portanto, um crime invisível. Ou será que foi?
Na pergunta está embutido o horror maior: apesar de
saberem que estavam sendo filmados, os dois
matadores profissionais (um PM e um segurança,
ambos brancos) não interromperam o ato. "Quando
crimes se empilham, eles se tornam invisíveis", repetiria
Brecht sobre o crime contra a raça negra que, de tanto
sustentar a construção do Brasil, se tornou invisível
mesmo quando visível.

O Brasil acabou com a escravidão e adentrou a pós-
abolição sem criar leis claramente segregacionistas.
Mas encontrou formas igualmente perversas de lidar
com os negros, contou em entrevista à BBC, anos atrás,
a historiadora Luciana Brito, da Universidade Federal do
Recôncavo Baiano. Segundo a professora, "a educação
para sobreviver numa sociedade racista a partir do não
dito tornou mais difícil para pessoas negras se
organizarem em torno de um inimigo visível... Você
entra numa loja e não é expulso, mas a vendedora a
ignora. Quem não a ignora é o segurança. Até o policial
negro é treinado pelo Estado para achar que todas as
pessoas que se parecem com ele são criminosas.
Quando está de farda, ele perde a identidade racial.
Ganha uma espécie de selo de qualidade. Vira o 'negro
de bem As primeiras reações do Brasil oficial que
despertou na sexta feira para a morte do soldador João
Alberto foram as esperadas. Era o Dia da Consciência
Negra, e o presidente da República estreou logo cedo
elogiando Pelé. Silenciou sobre o crime que, no final da
tarde, levaria o Brasil real às ruas. A Brigada Militar
informou que o policial assassino é apenas "PM
temporário" e que a corporação é "uma instituição
dedicada à proteção e à segurança de toda a
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