Exame - Portugal - Edição 440 (2020-12)

(Antfer) #1

Macro



  1. EXAME. DEZEMBRO 2020


Começamos por lhe ouvir a voz, a cha-
mar, pouco antes de sentirmos as mãos
pequeninas nas nossas pernas. Fala em
árabe, com os olhos cheios de lágrimas, e
nós insistimos em seguir caminho como
se fosse apenas um som que se mistura
com todos os outros da cidade. Ao fim de
uns metros de insistência paramos para
a ouvir – a tradução vem depois, mas o
desespero percebe-se, não importa a lín-
gua em que se fale. Damos-lhe as libras
que temos na carteira, que chegarão para
pouco mais do que para comprar um pa-
cote de seis pães árabes devido à subida
astronómica do preço dos alimentos nos
últimos tempos: 350% em apenas um
ano. Dela não guardámos o nome, mas a
história: tem 12 anos e dois irmãos mais
novos. A família fugiu da Síria, há dois
anos, à procura de paz e de uma vida em
que sobreviver não fosse a única solução.
Os pais morreram na explosão do porto
de Beirute, a 4 de agosto de 2020. Agora,
aquela pequena de olhos tristes e corpo
franzino é a imagem de um desespero que
está escondido numa cidade que continua
a fazer o possível por se reerguer.
Continuamos o caminho em silêncio,
e sentimos o nosso próprio suspiro [de alí-
vio?] quando olhamos o Mediterrâneo, a
menos de um quarteirão de distância.
Estamos na marina de Beirute, lugar pri-
vilegiado e onde se passeiam libaneses,
saudis e os poucos europeus que arriscam
uma visita turística na “Paris do Mediter-
râneo”. Sucedem-se os restaurantes caros,
alinham-se os barcos que ostentam ban-
deiras da Ferrari, desfilam casais com as
amas atrás. A menina de olhos tristes e
corpo faminto está ali tão perto e parece
que vive num outro mundo.


fugiados, uma vez que a incerteza política
está a dificultar até a ajuda humanitária às
vítimas da explosão e da fome, generica-
mente, no Líbano. Muitos sírios dirigiram-
-se à cidade para doar parte dos alimentos
que tinham recebido daquele organismo às
famílias afetadas pela detonação no porto
de Beirute, que foi só o elemento final de
uma tempestade perfeita. Senão, vejamos:
depois de décadas em guerra, os conflitos
armados no país só abrandaram em 2017;
no ano passado, no meio de uma crise fi-
nanceira que já se fazia sentir, o povo saiu
à rua a gritar thawra (revolução) e conse-
guiu que o Governo se demitisse; no iní-

C


Beirute é assim, cheia de idiossincra-
sias. Os refugiados sírios encontram aqui
paz – “o que já não é pouco!”, dir-nos-á o
padre Rui Fernandes, jesuíta que há quase
dois anos vive no Líbano –, mas “é só. Há
muito pouco para além disso”. As feridas
da guerra civil na Síria, que durante anos
se alastraram pelo território libanês, ainda
estão abertas, e é difícil para os libaneses
afastar a memória dos acontecimentos re-
centes. Por outro lado, vamos sabendo das
histórias que nos últimos meses poderiam
ter ajudado na cicatrização: a ajuda do Pro-
grama Alimentar Mundial (WFP, na sigla
em inglês), só chegou aos campos de re-
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