DEZEMBRO 2020. EXAME. 61
apenas o trabalho, mas condiciona tam-
bém o ensino dos mais novos, que não
podem comprar material. “Perdi muitos
alunos” e isso vai refletir-se até na saúde
mental da sociedade. “A melhor terapia
para sair deste apocalipse é a arte-terapia”,
garante à EXAME Goguikian, pintora reco-
nhecida e premiada internacionalmente.
“Acredito que os meus alunos estão a so-
frer, e que a arte os pode ajudar.” A neces-
sidade de psicólogos é, aliás, uma das mais
apontadas por famílias e ONG que ainda
encontrámos no terreno. Sobretudo para
os mais novos, que ainda não entendem
que, na mesma medida em que é um te-
souro geo-estratégico, o Líbano é também
um barril de pólvora à mão de demasiados
interesses económicos e políticos que lhe
dificultam o caminho da paz.
As vendas das obras de arte caíram a
pique, numa altura em que há menos tu-
ristas e menos gastos. Enquanto os murais
da cidade se enchem de novas produções
por parte de artistas mais ou menos urba-
nos, o retorno desse esforço é quase nulo.
Mireille pede à comunidade internacional
que não se esqueça dos artistas libaneses, e
que se lembre que a arte é mesmo o cami-
nho para a redenção. Fala-nos, a ritmo ace-
lerado, enquanto nos mostra as telas rasga-
das pelos vidros que saltaram das janelas
no dia da explosão. Ela e a família não esta-
vam em casa, e os estragos são, felizmente,
solucionáveis. A revolta pela situação, por
seu lado, tem sido o principal gatilho: de
repente, a mesa da sala enche-se de ilus-
trações, colagens e afins que Mireille fez
nos últimos dois meses, como um grito de
socorro. “As pessoas acham que os artistas
têm muito dinheiro, mas a verdade é que
às vezes não sei mesmo como vou comprar
comida até ao final do mês. Só que não há
como fazer outra coisa. Tudo isto vai ter
impacto na minha arte”, atira em jeito de
conclusão.
Quando saímos à rua, depois de um
jantar improvisado em casa da artista,
olhamos as ruas desertas e silenciosas de
Mar Mikhael, um dos bairros mais tradi-
cionais da cidade. A noite traz a Beirute
uma paz e uma esperança em que os liba-
neses gostam de acreditar, mesmo depois
de tantas décadas de conflito. Se isto não é
uma lição de resiliência, não sabemos bem
o que lhe chamar. E
Offre Joie devolveu-me tudo. Reconstruiu
tudo”, conta-nos Charbel, que abre religio-
samente a sua oficina para não ter trabalho,
durante 12 horas. O filho universitário per-
deu um olho na explosão e isso é o que mais
lhe dói. Mas, apesar da desesperança, con-
tinua a levantar-se, todos os dias, porque é
isso que o povo libanês faz: nunca baixa os
braços. E tem um sentido de comunidade
que dificilmente sentimos na Europa.
A ARTE SALVA
Mireille Goguikian é uma pintora de ori-
gem arménia que retrata Beirute como
ninguém. Aliás, entre a comunidade ar-
tística é mesmo apelidada de Mireille de
Ville, por se inspirar nas cidades e na es-
perança, que dá alento. Recebeu-nos em
sua casa, com a generosidade típica dos
nacionais, e quando demos conta já es-
távamos rodeados de obras da pintora: a
Notre Dame em chamas, a Arménia a lu-
tar para se reerguer, Beirute em tempos
de revolução, Nova Iorque a recuperar do
11 de Setembro. Em todas as telas encon-
tramos um sol amarelo, o seu símbolo de
renascimento. No entanto, na sua voz,
encontramos o desalento de uma classe
que tem tido muita visibilidade mas ne-
nhum apoio. “Uma caixa de lápis pastel,
por exemplo, custa atualmente 200 dóla-
res”, exclama. “É uma loucura”, lamenta
enquanto explica que o preço altamente
inflacionado do material não lhe dificulta