O Tempo (2020-12-02)

(Antfer) #1
FOTO CHARLES SILVA DUARTE / - 1º/10/

Após ter analisado 44 sentenças em pesquisa de dissertação de mestrado, advogada comprova peso da questão racial em condenações


Observatório dos Direitos Humanos


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No Brasil, menos de um quin-
to dos juízes é de pessoas ne-
gras. Pesquisa do Conselho Nacio-
nal de Justiça (CBJ) indica que
18,6% dos magistrados se declaram
negros, sendo apenas 1,6% pretos.
Na avaliação do Frei David Santos,
integrante do Observatório dos Di-
reitos Humanos do Poder Judiciá-
rio, a falta de diversidade tem um al-
to custo para a sociedade. “Eu tenho
plena convicção de que o Judiciário
brasileiro pratica, em alto grau, o ra-
cismo estrutural. E destaco dois pon-
tos: a estrutura é feita por brancos,
pensando em brancos que tiveram
oportunidades”, afirma.
Frei David é diretor-executivo da

Educafro. Para ele, em parte, a culpa
da baixa representatividade de ne-
gros nesse meio é das escolas de ma-
gistratura. “Nesses anos todos, as esco-
las de direito não têm discutido racis-
mo. E os juízes passam todo o período
de formação sem discutir isso ou estu-
dar ações afirmativas”, destaca.
Em 2015, o CNJ determinou
que todos os Tribunais de Justiça
do Brasil deveriam reservar 20%
das vagas de concursos para ne-
gros. “Não sei de todos os Estados,
mas a maioria não cumpre essa de-
terminação. Há três anos, inclusive,
o Observatório denunciou ao CNJ
que os tribunais estavam desrespei-
tando a determinação, no caso de

vagas para cartórios. Há um mês, fi-
zemos uma reunião virtual com o
atual presidente do CNJ, ministro
Luiz Fux, que se comprometeu a
nos dar uma resposta agora, no dia
10 de dezembro”, conta Frei David.
Presidente da Associação de
Amigos e Familiares de Pessoas em
Privação de Liberdade, Maria Tere-
sa dos Santos avalia como grave a
falta de negros na magistratura.
“Homens brancos, que tiveram to-
das as oportunidades na vida, jul-
gam e encarceram pessoas negras
e periféricas que passam por dificul-
dades que eles desconhecem. Falta
sensibilidade no julgamento”, afir-
ma. (QA/TL)

Pelo Brasil


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E VÍDEOS

¬QUEILA ARIADNE
TATIANA LAGÔA
¬O editor de vídeos Luan Cândi-
do tem 40 anos. Desde a adoles-
cência, sempre se sentiu alvo de
olhares que o colocavam na posi-
ção de suspeito. Algumas vezes, es-
se pré-julgamento chegou a levá-
lo para a prisão. “Em 2009, eu era
usuário de drogas e estava em um
beco para comprar. De repente, a
polícia chegou e perguntou de
quem era a maconha. O traficante
negou. Eu também. Mas acaba-
ram me prendendo, e ele ficou sol-
to. Ele era branco. Eu, negro, usa-
va cabelo rastafari”, conta Luan,

que foi solto horas depois e absol-
vido no julgamento.
A dissertação de mestrado da
advogada Bárbara Souza Olivei-
ra mostra que esse não é um ca-
so isolado de tratamento dife-
rente dado a suspeitos brancos
e negros. Ela analisou 44 proces-
sos de crimes contra a vida julga-
dos em 2016 e os comparou pe-
lo recorte racial. “Os negros são
vistos como perigosos, e as justi-
ficativas das sentenças têm ex-
pressões vagas, como proteção
da ordem pública. Já os brancos
normalmente não são aponta-
dos como integrantes de organi-

zação criminosa e têm penas
mais amenas”, conclui.
Em uma das análises, ela com-
parou dois crimes idênticos com
penas desiguais. Em fevereiro de
2009, três homens brancos atira-
ram contra uma pessoa em Juiz de
Fora, na Zona da Mata. A vítima
saiu ilesa da tentativa de homicí-
dio, e os atiradores foram presos
em flagrante. Três dias depois, os
rapazes conseguiram autorização
judicial para aguardar o julgamen-
to em liberdade. Na época, o juiz
justificou: “não existem motivos le-
gais para prisão preventiva, e, em-
bora o ato praticado tenha repercu-

tido negativamente em nossa socie-
dade, hei por bem conceder aos
réus liberdade provisória”, diz o des-
pacho judicial.
Em agosto de 2016, dois deles
foram absolvidos. O terceiro foi
condenado pelo crime de disparo
em via pública, em regime semia-
berto. Nenhum deles ficou encarce-
rado, e o juiz não considerou tenta-
tiva de homicídio por entender que
eles não queriam matar a vítima.
Na mesma comarca, três ne-
gros moradores de periferia come-
teram crimes similares em dezem-
bro de 2014. Apesar de várias ten-
tativas da defensoria pública, eles

não conseguiram aguardar o jul-
gamento em liberdade. As justifi-
cativas para o encarceramento
preventivo foram a gravidade do
delito, a necessidade de garantia
da ordem pública e a periculosida-
de dos envolvidos.
Assim como os três brancos do
crime anterior, eles foram julgados
em agosto de 2016. Apesar de a da-
ta do júri ter sido quase a mesma, a
sentença foi diferente: o atirador
negro foi condenado a oito anos
em regime semiaberto; o segundo
envolvido, sentenciado a quatro
anos em semiaberto, e o terceiro, a
dois anos no regime aberto.

Brancos e negros recebem penas


diferentes para crimes iguais


Falta diversidade no Judiciário


0 Curitiba. Uma juíza disse na sentença, em
agosto deste ano, que um homem negro de 42 anos
era “seguramente integrante do grupo criminoso,
em razão da sua raça”. A magistrada citou três
vezes a raça do réu no documento no momento em
que aplicava a dosimetria da pena, que foi de 14
anos e dois meses de prisão por roubos e
associação a organização criminosa. Depois, a
juíza soltou nota pedindo “sinceras desculpas” e
dizendo que o trecho foi retirado do contexto.

0 Pernambuco. Em novembro de 2020, 34 juízes
e juízas da Associação dos Magistrados do Estado
de Pernambuco (Amepe) assinaram um manifesto
contra um curso online antirracismo. “Nenhum
recurso material ou imaterial da nossa associação
deve ser despendido para atender a interesses
outros que não o bem-estar dos seus associados e
a proteção das tão aviltadas prerrogativas da
nossa função”, justificam. Após o manifesto,
alguns juízes se desfiliaram da Amepe.

Estatísticas.
Negros são 66,7% da
população carcerária
do país, segundo
dados do Ministério
da Justiça, e 55% dos
brasileiros, de acor-
do com o IBGE

12 | O TEMPOBELO HORIZONTE|QUARTA-FEIRA, 2 DE DEZEMBRO DE 2020 BRASIL


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