O Tempo (2020-12-02)

(Antfer) #1

“A história do samba


é de resistência


¬BRUNO MATEUS
¬Martinho da Vila, 82, está confi-
nado desde março. Saiu pouquíssi-
mas vezes, dá para contar nos de-
dos de uma mão. O isolamento cau-
sado pela pandemia é incômodo,
claro, mas o cantor e compositor
não se debulha em lamentos. Ao
contrário: bem-humorado, diz que
está levando bem o período e agra-
dece por se manter ativo, cheio de
coisas para fazer por conta de sua
profissão. “Barco parado não faz
frete”, faz graça.
Ontem, o Magazine bateu um
papo com aquele que é uma das fi-
guras mais representativas do sam-
ba, que comemora hoje seu dia na-
cional. São mais de 50 anos de car-
reira e dezenas de discos. O mais re-
cente, “Rio: Só Vendo a Vista”, uma
ode realista ao Rio de Janeiro, de tí-
tulo gracioso e debochado, foi lan-
çado em 20 de novembro, Dia da
Consciência Negra. O álbum traz
12 temas que fazem um retrato da
cidade onde ele vive desde os 4
anos. São cinco faixas inéditas e ou-
tras canções (sem os grandes clássi-
cos) escolhidas a dedo em seu reper-
tório. Um disco repleto de afeto fa-
miliar, “carioquismos” e sons de ter-
reiro: uma declaração de amor ao
samba e à cultura afro-brasileira.

Entrevista


Disco “Rio: Só Vendo a Vista”
é uma homenagem do sambista
à Cidade Maravilhosa

No Dia Nacional No Dia Nacional


do Samba, do Samba,


Martinho da Vila Martinho da Vila


fala sobre o novo fala sobre o novo


álbum, além álbum, além


de política, de política,


racismo e racismo e


pandemia pandemia


TEL: (31) 2101-3956 Editora:Marília Mendonça
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[email protected] twitter: http://twitter.com/OTEMPO-
magazine Atendimento ao assinante: 2101-

O álbum é uma homenagem
ao Rio, com 12 faixas, sendo
cinco inéditas e algumas
praticamente desconheci-
das. O que te despertou a
ideia de gravar um disco re-
verenciando a cidade?
A ideia desse disco surgiu com a
música que dá título a ele. Mandei a
melodia para o compositor Geraldi-
nho Carneiro, meu parceiro, e ele
fez a letra. Achei um passeio pelo
Rio de Janeiro, aí tive a ideia de fa-
zer um álbum baseado no Rio, fui
colocando músicas bem cariocas.
Ele começou a ser gravado há dois
anos e foi lançado agora. Seria lan-
çado em maio, mas aí veio essa his-
tória de pandemia que não passa, e
resolvemos lançar virtualmente. Es-
se é bem diferente do anterior
(“Bandeira da Fé”, de 2018), todas
as músicas têm a ver com o Rio.

Inclusive, esse lançamento
exclusivamente virtual é
uma novidade na sua carrei-
ra. E no período da pande-
mia você também fez shows
online. O que achou dessas
experiências?
É interessante. Tudo que acontece
de ruim acaba tendo algo de bom.

Por exemplo, esse negócio de pan-
demia trouxe um hábito mais forte
de usar e trabalhar na internet. Mui-
ta gente nem usava direito. Quando
terminar a pandemia, esses hábitos
não vão sair com facilidade. É mui-
to legal uma pessoa em qualquer lu-
gar do mundo poder escutar minha
música, meu samba. Outro dia mes-
mo eu conversava com um amigo
que mora em Israel, e ele disse uma
coisa interessante: “Martinho, eu e
minha família vimos sua live, gosta-
mos muito”. Olha que legal, que coi-
sa nova e boa.

Essa homenagem ao Rio é
feita com esperança, desa-
lento ou um pouco dos dois?
Com esperança, embora não seja
uma esperança muito eufórica. Não
é uma exaltação deslavada do Rio,
é um retrato da cidade, aonde che-
guei aos 4 anos de idade (ele nas-
ceu em Duas Barras, no interior flu-
minense). Minha relação com o Rio
é fortíssima, sou carioquíssimo.
Aliás, todo mundo que vem pra cá
vira carioca. Se você vier morar
aqui, ficar um tempo por aqui, vai
virar carioca também. Às vezes,
saem umas listas de 100 cariocas
mais notáveis, aquela coisa, e mais

de 30% são cariocas que não nasce-
ram no Rio (risos).

Com que sentimento você
chega a este 2 de dezembro,
Dia Nacional do Samba, sen-
do um dos nomes fundamen-
tais do gênero?
A história do samba é uma histó-
ria de resistência, se confunde
com a história do negro brasilei-
ro. Muitos expoentes da música,
além de seus talentos criativos, fo-
ram importantes por suas atitude
e integração. Noel Rosa, por
exemplo. Ele fazia parte de um
grupo chamado Bando de Tanga-
rás, cantava samba, eram todos
brancos, e samba era música de
preto e favelado. Noel subia o
morro, trocou figurinhas com Car-
tola e Ismael Silva, bebeu na fon-
te deles e trouxe o samba do mor-
ro para a cidade. Noel é dessas fi-
guras que devem ser lembradas.
E tenho muito orgulho de tam-
bém ser reconhecido. A gente faz
as coisas não para ser reconheci-
do, mas por paixão. Não sei como
seria minha vida sem o samba,
nunca pensei nisso, mas sei que
minha atuação junto ao samba in-
fluenciou muito para que eu seja

quem eu sou hoje.

Como você tem levado a pan-
demia?
Caramba, isso está horrível. Estou
há quase um ano dentro de casa.
Desde março saí pouquíssimas ve-
zes. Mas vou levando, gastando
tempo, fazendo outras coisas. Mi-
nha atividade, em geral, me ajuda
muito porque estou sempre ocupa-
do. Estou aqui dando essa entrevis-
ta, amanhã (hoje) vou participar
de um programa na Globo. Vou le-
vando devagar e sempre. Barco pa-
rado não faz frete (risos). Conheci
esse provérbio na roça. Lá em Duas
Barras, onde nasci, é um lugar bas-
tante amineirado, de cultura minei-
ra muito marcante. Lugar de folia
de reis, folclore, isso tudo influen-
ciou minha vida. E o samba minei-
ro é muito forte, mineiro é bom de
samba.

“Rio Só Vendo a Vista” foi
lançado em 20 de novem-
bro, Dia da Consciência Ne-
gra. O que tem achado das
manifestações e discursos
antirracistas no Brasil?
Há um avanço, o racismo é uma
doença curável, como disse Nel-

son Mandela. E quando ele está
em discussão é um bom sinal. Os
avanços vêm com o choque do
problema, e isso tem acontecido.
É uma doença curável, mas não é
fácil. A cura passa pela educação,
pelo conhecimento. As pessoas
vão se informando, e a cabeça vai
melhorando.

Pouco antes do Dia da Cons-
ciência Negra, a Fundação
Cultural Palmares anunciou
a exclusão de artistas ne-
gros vivos de uma lista de
personalidades notáveis, en-
tre eles você, Elza Soares,
Gilberto Gil, Milton Nasci-
mento e Conceição Evaristo.
O que isso representa para
você?
É uma atitude esperada. Na mi-
nha opinião, ele (Sérgio Camar-
go, presidente da fundação) foi
colocado lá com o objetivo de es-
vaziar a fundação. Achei ótimo
ser excluído desse grupo porque a
fundação já não existe mais, não
tem mais relevância com esse go-
verno, não me sinto parte dela.
Precisamos criar outro órgão,
mas que não seja ligado ao gover-
no. Aquela fundação já era.

AGÊNCIA O GLOBO/DIVULGAÇÃO

18 | O TEMPOBELO HORIZONTE|QUARTA-FEIRA, 2 DE DEZEMBRO DE 2020


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