Elle - Portugal - Edição 386 (2021-01)

(Antfer) #1

54 ELLE PT


FOTO: RUVEN AFANADOR

REFLEXÃO


DESCONHECIDO


A VISTA!


ramtrêsda manhãquandocliqueina
tecla“enviar”,encaminhandoo livro
emqueestavaa trabalhardesdeo ano
passadoparameuo editor.Servi-me
umcopodevinhoenquantoo alívio
percorriao meucorpo,semsaberquedentro
deduassemanasestaríamostodospresosa
umacrisedesaúdeglobal.
O meulivroé sobrecomoas mulheres
millennialvivem.O quepensam,como
falam,as suaspreocupações...tudopare-
cegirarà voltadeumapalavra:escolha.
Outrorasinónimodeliberdade,o excesso
deopçõestornou-seumobstáculo.Como
sabemosqueestamosa fazera escolhacerta?
Atéque,derepente,a possibilidadede
escolhafoi-nostirada.Enquantoo jogodas
cadeirasda vidaparava,fomosconfrontadas
comumarealidade:perceberondeé que
as nossasescolhasnosconduziramatéesse
momento:as nossascasas,os nossosamores,
as nossasvidas.Gostámosdoquevimos?
Pensoqueseriaumdisparateescrever
sobreo queaprendemosnestetempode
paragem– é impossívelavaliarracional
e friamenteestascoisasquandoaindaas
estamosa viver.Masa vidacomoa conhe-
cíamosmudounodiaemqueentrámos
emquarentena.O novonormalcaracteri-
zou-sepelamonotonia,mastambémpela
oportunidadedequestionarmosas vidas
quetínhamose compará-lascomos nossos
sonhos.Se nãopodemosvoltarao “antes”,
paraondeiremos,então?

Quando a quarentena foi anunciada, a nossa vida mudou para
sempre. A jornalista britânica Pandora Sykes reflete sobre a estranha
primaverade 2020 e sobreo iníciodorestodasnossasvidas.

`


Controlarascoisasé umapartefundamental da feminilidade mil-
lennial. Como pessoa profundamente controladora, o meu pior medo é
descontrolar-me – ao ponto de, às vezes, ter que me recompor e tentar
controlar o rubor que me sobe ao rosto. A pandemia tirou-nos qualquer
ilusão de controlo que pensávamos ter sobre as nossas vidas, afetando
as pessoas da forma habitual: aqueles com segurança financeira e mais
espaço físico saíram-se melhor dos que estavam em situações opostas.
No entanto, o sentimento de distância das nossas próprias vidas foi
universal, à medida que percorriamos as nossas suas agendas e pelos
inúmeros casamentos, festas e feriados cancelados.
Talvez como forma de mitigar as coisas grandes, as coisas pequenas
passaram a ter um impacto descomunal: ir ao ginásio, cortar o cabelo,
tomar um café fora todas as manhãs. A infraestrutura das nossas vidas
não foi desfeita, foi dizimada. Sem as nossas rotinas diárias, moldadas
e aprimoradas ao longo da nossa vida adulta – e frequentemente reali-
zadas em modo piloto automático – sentimo-nos perdidas e nervosas.
Comecei a evitar espelhos, assombrada pelos centímetros de raízes
escuras – mais do que tinha visto desde os meus 13 anos – o que,
embora dificilmente seja algo de importância global, fez-me sentir
como se uma estranha estivesse a olhar para mim. Uma noite, na
loucura, sentei-me e fiz uma pedicure ao meu marido. A sensação de
satisfação que senti foi desproporcionalmente grande enquanto as
nuvens de partículas de pele morta passavam à frente do meu rosto.
«Não consigo controlar nada fora desta casa», pensei entre dentes.
«Mas posso cuidar dos teus “cascos”».
Sou cautelosa quando o tema é finais felizes. Eles podem até ser
um insulto para aqueles que estão em estado de desespero. Mas se

E
OUT OF CONTROL
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