Elle - Portugal - Edição 386 (2021-01)

(Antfer) #1
FOTOS: IMAXTREE (2) - UNSPLASH (1)

REFLEXÃO


56 ELLE PT


No início, foi emocionante. A tecno-
logia ajudou a preencher o vazio: o meu
marido passava os dias no Zoom e as
noites na Houseparty, com pequenas
pausas para carregar o telemóvel. Sen-
tia-me claustrofóbica e ao mesmo tempo
aliviada por estar presa em casa – por não
precisar de nenhuma desculpa para ir
para a cama cedo com um livro.
De certa forma, toda uma geração es-
teve a preparar-se para o distanciamento
social. Os millennials são tão versados
em FOGO (Fear of Going Out) quanto
em FOMO (Fear of Missing Out). Não
saíamos de cada, mas nunca estávamos
realmente sozinhos: foram dias cheios
de diferentes pessoas, mas todas pixe-
lizadas. «Tenho tantas saudades tuas»,
disse à minha mãe com tristeza, certo
dia. Ansiava pela imagem reconfortante
dela, sentada no meu sofá, a beber chá.
«Eu não!», disse-me ela alegremente,
com o iPhone equilibrado no peito para
que eu tivesse uma visão perfeita... das

suas narinas. «Agora estou sempre a
ver-te», respondeu-me.
Depois das primeiras quatro semanas,
começámos a fraquejar. Incapazes de es-
capar das nossas casas e de nós mesmos, a
pressão dos cortes salariais e de familiares
solitários ou doentes começou a fazer-se
sentir. Perdi alguém que amava muito
(por motivos não relacionados à Covid)
e senti-me consumida pelo cansaço. Pe-
netrou até aos meus ossos; parecia que
estava presa num filme de terror.
Alguém na televisão apelidou isto
de “cansaço coletivo”. Cansada e sem a
intimidade de um encontro ao vivo, o
FaceTime começou a ser mais uma tarefa
a cumprir. O meu marido acabou com as
festas. As amizades que sempre existiram
floresceram, ao passo que aquelas que só
fazem sentido quando é possível sentir o
hálito um do outro murcharam, perderam
pétalas e algumas morreram. Por um lado,
falar menos tornou-se numa nova forma de
liberdade. À medida que a pandemia nos

há algo que podemos celebrar neste momento é que fomos forçados
a abandonar o controlo de qualquer coisa fora das nossas próprias
quatro paredes. A nossa atenção, quando não estava fixada nos canais
de notícias, estava focada nas prateleiras de temperos, exercícios para
fazer em casa e em arrumar uma lista interminável de conjuntos de
caixas. Dominar a execução de um novo prato (para mim foi laksa
de frango) ou terminar um puzzle adquiriu um novo significado.
Cansei-me de tentar prever quando tudo isto acabaria. A certa altura,
decidi render-me ao desconhecido e, provavelmente pela primeira
vez em toda a minha vida, encarei um dia de cada vez. Para alguém
que nunca deixa de olhar para o futuro – para o próximo projeto de
trabalho, as próximas férias, o próximo filho – foi necessária muita
disciplina. Tive que controlar os meus pensamentos à força todas
as vezes que eles fugiam para o futuro. Questiono-me se seremos
capazes de... Não! Hoje estou bem. Hoje estou a trabalhar. Hoje
estou a ser mãe. Amanhã, por enquanto, é um destino longínquo
para o qual não tenho permissão para voar.

separava, começámos a pensar no que torna
um relacionamento importante e o que
valorizamos em quem está na nossa vida.
Juntamente com esta introspeção
doméstica, a coesão social local floresceu.
Tivemos movimentos de agradecimen-
to aos profissionais de saúde. Folhetos
eram colocados nas caixas de correio
diariamente, informando-nos sobre
voluntários que poderiam ir buscar co-
mida ou medicamentos para as pessoas
que estavam em isolamento. Claro que
nem tudo é bonito. Para cada sorriso
simpático ou aceno de cabeça para o
outro lado da estrada, há sempre alguém
que se debruça na janela do carro – como
aconteceu comigo na noite passada –
para me dizer que sou uma vadia por
não estar afastada dois metros do meu
amigo. A verdade é que uma pandemia
não transforma um idiota num santo,
assim como uma festa virtual não pode
substituir uma discoteca, por mais bê-
bada que uma pessoa esteja.

BEM VINDOS À ERA DO ZOOM


«DURANTE A PANDEMIA, O USO DE APPS
DISPAROU COM MUITOS A PROCURAREM-NAS NÃO
PARA SEXO, MAS SÓ PARA COMUNICAR».
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