DEZEMBRO 2020 Le Monde Diplomatique Brasil 23
UMA POLÍTICA MERCANTIL
O último relatório da Organização
das Nações e Povos Não Representa-
dos (Unpo),^7 uma ONG heteróclita
que reúne tanto o Governo Provisó-
rio do Estado de Saboia como o Con-
gresso Mundial dos Uigures, descre-
ve em detalhes todas as técnicas de
bloqueio burocrático desenvolvidas
contra ativistas por diplomatas e fun-
cionários do Desa, do Ecosoc e até do
Conselho de Direitos Humanos da
ONU: credenciamentos que se arras-
tam, intimidação, monopolização do
tempo de fala... Mais do que qualquer
outro país, a China está sempre ali,
ao lado da Rússia e do Irã. Em março
de 2018, foi rejeitada uma resolução
de procedimento (que requer nove
votos sem veto) permitindo que o Al-
to Comissário para os Direitos Hu-
manos informasse o Conselho de Se-
gurança sobre as violações dos
direitos humanos na Síria, por causa
do voto contrário da Costa do Mar-
fim. Muitos viram nisso o resultado
de uma pressão chinesa nos bastido-
res. Em outubro, a China conseguiu
que fosse rejeitada uma resolução da
Assembleia Geral contra a repressão
e a violação dos direitos dos uigures
por 57 votos (entre eles os da Arábia
Saudita e dos Emirados Árabes Uni-
dos), embora tenha perdido um pou-
co de terreno: 39 votaram a favor, ao
passo que um ano antes eles eram 23.
A eleição em 2019 – no primeiro
turno – de Qu Dongyu para a Organi-
zação das Nações Unidas para a Ali-
mentação e a Agricultura (FAO) foi
vista como mais um símbolo dessa
inf luência. Segundo alguns analis-
tas, a China teria se beneficiado da
retirada do candidato camaronês em
troca do perdão de uma dívida de
US$ 70 milhões.^8 Jean-Jacques Ga-
bas, pesquisador e especialista em
políticas agrícolas chinesas na Áfri-
ca, vê nisso um voto de sanção contra
o Ocidente por parte dos países afri-
canos, mais do que o sinal de uma
real atração pela China. A aposta, pa-
ra esses países, seria fortalecer seu
poder de negociação no cenário in-
ternacional e aumentar a ajuda, o in-
vestimento direto chinês e o comér-
cio. “Até a epidemia, o que emergia
dos discursos de Qu Dongyu era uma
forte ênfase nas novas tecnologias,
no 5G e no desejo de vender um mo-
delo de intensificação do tipo ‘revo-
lução verde’, como a conhecemos na
década de 1960, com sementes me-
lhoradas, pesticidas etc. Havia pouco
espaço para a agroecologia, a biodi-
versidade. O novo diretor-geral colo-
cava a China em um papel de lideran-
ça”, explica Gabas. Uma política mais
comercial do que justa, voltada a es-
coar insumos agrícolas – a China é o
maior produtor mundial de fosfatos.
Desde a crise, Gabas nota que surgi-
ram questões relacionadas ao bem-
-estar social e à produção local. “Há
uma nova dinâmica. Qu Dongyu se-
gue a tendência, que se volta para um
questionamento de práticas anterio-
res, e ecoa o discurso de muitos Esta-
dos africanos diante dos efeitos nega-
tivos da Covid-19.”
O modelo de desenvolvimento
agrícola preconizado pela China está
de fato longe de ser atraente para as
populações africanas em pleno cres-
cimento demográfico e que devem
continuar majoritariamente rurais
até 2050. Então, essa mudança de dis-
curso é um desejo de ouvir esses paí-
ses ou um golpe de comunicação?
Desde a pandemia, a China não está
muito bem na imprensa: os depoi-
mentos dos africanos de Cantão joga-
dos nas ruas pela polícia em abril se-
mearam a ira no continente, rendendo
ao embaixador chinês uma convoca-
ção das autoridades nigerianas.^9
Outra instância de interesse da
ONU: a UIT, reino de Houlin Zhao des-
de 2015. Ela se ocupa da gestão do es-
pectro das frequências em escala glo-
bal, da atribuição de órbitas de satélites
(qualquer pessoa que deseje enviar
um satélite ao espaço deve pedir a ela),
bem como da internet, que entrou em
seu campo de atuação nos anos 2000
- uma ampliação de seu campo de
competência que gerou polêmica.^10
A China é suspeita de querer defi-
nir as normas segundo sua conve-
niência. O 5G é há muito tempo alvo
de uma disputa para saber quais fre-
quências lhe atribuir no espectro, so-
bretudo entre os Estados Unidos (que
queriam as frequências mais altas,
em torno de 28 GHz) e a China (abai-
xo 6 GHz). “As redes de telecomuni-
cações e de informática requerem
normas internacionais para que os
equipamentos possam se comuni-
car”, explica Marceau Coupechoux,
professor da Télécom Paris e da École
Polytechnique. “Quanto mais uma
norma (ou um padrão) é comparti-
lhada por um grande número de
equipamentos, mais a rede tem inte-
resse para seus usuários. Desse mo-
do, a batalha entre países e entre em-
presas é travada em grande parte nos
organismos de padronização. Não
admira que as grandes potências, en-
tre elas a China, tentem exercer sua
inf luência sobre esses órgãos.”
Entretanto, também aqui parece
complicado medir a extensão dessa
inf luência. Gilles Brégant, diretor da
Agência Nacional de Frequências
(ANFR) da França, que representa o
país na UIT-R, órgão responsável por
forjar as normas internacionais de
radiocomunicações, tem uma abor-
dagem moderada: “Os fabricantes
têm interesse em obter faixas mun-
diais. O trabalho de harmonização
da UIT consiste em encontrar pontos
comuns que permitam, por exemplo,
que seu telefone francês funcione nos
Estados Unidos, e vice-versa. Não há
disputa pelo objetivo comum a ser al-
cançado nem tentativas de impor as
faixas defendidas pelos norte-ameri-
canos ou pelos chineses para fazer
faixas comuns”. Também não haveria
mais problemas estratégicos em par-
ticular para os satélites: “Muitos paí-
ses os têm, e é um sistema bastante
‘continental’: as frequências acima
da Europa devem ser as mesmas que
na Turquia, mas é menos grave se
elas forem diferentes acima de Si-
chuan [na China]... A situação é mais
complexa para as constelações de sa-
télites, mas, hoje, não existem mega-
constelações chinesas no mesmo ní-
vel de desenvolvimento que as
norte-americanas OneWeb ou Spa-
ceX”. Para Brégant, apenas a direção
encarregada dos programas para os
países em desenvolvimento, a UIT-D,
poderia estar em posição de promo-
ver as tecnologias chinesas. Mas no
momento ela tem uma diretora
norte-americana...
Em compensação, o Departamen-
to de Operações de Manutenção da
Paz (Domp), vinculado ao Secreta-
riado da ONU, parece negligenciado
pela China. É verdade que o país con-
tribui ali com mais tropas do que os
outros quatro membros permanen-
tes do Conselho de Segurança.^11 Não
há dúvida de que essa presença maci-
ça lhe permite acompanhar seus in-
vestimentos, sobretudo na África, on-
© Amanda Daphne
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