Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 161 (2020-12)

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24 Le Monde Diplomatique Brasil^ DEZEMBRO 2020


de se desenvolveram seis das treze
operações de paz realizadas em 2020.
Sua inf luência dentro do próprio or-
ganismo, porém, não parece ser das
maiores. “Essa é uma das grandes
perguntas que todos se fazem aqui”,
confessa B.S., um funcionário africa-
no do Domp. “Mas a China não tenta
assumir um papel de potência.” Esse
departamento, de longe o mais pesa-
do em termos de despesas, continua
sendo reserva privada da França, que
o lidera desde 1997. “Corriam rumo-
res, com a chegada de António Guter-
res [o atual secretário-geral da ONU,
eleito em 2016], de que um chinês ha-
via sido sondado para sua direção,
mas os ocidentais ficaram em alerta e
se uniram contra a China.” Final-
mente, e sem surpresa, o francês
Jean-Pierre Lacroix foi nomeado.
Quanto aos instrumentos orça-
mentários, a China ainda não tomou
conta deles. É verdade que há quinze
anos suas contribuições (obrigató-
rias) para o orçamento da ONU não
passavam de 2% do total, e hoje ela é
o único país além dos Estados Unidos
a exibir uma cota de dois dígitos: 12%



  • contra 22% dos norte-americanos.^12
    A China é a principal contribuinte da
    Organização das Nações Unidas para
    o Desenvolvimento Industrial (Onu-
    di), fornecendo 19,8% de seus recur-
    sos,^13 e da Organização das Nações
    Unidas para a Educação, a Ciência e a
    Cultura (Unesco), em cujo orçamen-
    to tem uma participação de 15,49%^14

  • duas agências que os Estados Uni-
    dos abandonaram, respectivamente,
    em 1996 e em 2018. Além disso, ela
    paga bem e no prazo: na primavera, o
    país já havia quitado toda a sua cota
    do orçamento de 2020.


CONTRIBUIÇÕES VOLUNTÁRIAS
LIMITADAS
Ocorre que o nível dessas cotas
não fornece nenhuma informação
sobre a estratégia do país. Na verda-
de, elas são em grande parte determi-
nadas por regras obrigatórias consa-
gradas na Carta das Nações Unidas,
às quais todos os Estados-membros
aderem, e estão diretamente ligadas
ao PIB de cada nação. Elas são pagas
em bloco e não são atribuídas a des-
pesas específicas.
Apenas as contribuições voluntá-
rias, destinadas a despesas específi-
cas, podem dar uma indicação das
preferências chinesas. Após Donald
Trump, muitos acusaram a China de
manter a OMS à sua mercê financei-
ra. Porém, embora sua contribuição
obrigatória à entidade – proporcional
ao PIB e à população – seja alta (22%
do total), a voluntária é baixa (1,4%).
Os maiores contribuintes são os Esta-
dos Unidos, a Fundação Bill e Melin-
da Gates, o Reino Unido, a Alemanha
e o Japão.^15


Pesquisador do Instituto de Estu-
dos Internacionais de Xangai, Mao
Ruipeng analisou as contribuições
pagas ao Sistema de Desenvolvimen-
to das Nações Unidas (UNDS), res-
ponsável em especial pela aplicação
dos Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável.^16 Segundo o pesquisador,
esses fundos teriam permitido à Chi-
na solicitar mais envolvimento no
projeto Novas Rotas da Seda. De fato,
o UNDS foi a primeira instância den-
tro da ONU a assinar um memorando
de entendimento sobre o projeto, em
2016, concedendo-lhe a legitimidade
desejada pela China. Como esse de-
partamento tem a particularidade de
ter suas entradas em quase todos os
órgãos da ONU, Mao Ruipeng dá a en-
tender que a China teria aproveitado a
oportunidade para obter, em troca de
gentilezas, a adesão de treze agências
e programas à iniciativa Novas Rotas
da Seda, entre elas a FAO, o Desa, a
OMS, o Programa Conjunto das Na-
ções Unidas sobre HIV/aids (Unaids)
e o Alto Comissariado das Nações
Unidas para os Refugiados (Acnur).
Mas o pesquisador reconhece os limi-
tes de seu estudo: “O financiamento
do UNDS pela China é relativamente
baixo se comparado aos doadores tra-
dicionais” – isto é, a Organização para
a Cooperação e o Desenvolvimento
Econômico (OCDE), que reúne os
países capitalistas desenvolvidos.
Em suma, as contribuições volun-
tárias chinesas são tão baixas que é
difícil generalizar e concluir que o
país esteja comprando as institui-
ções. “A Alemanha dá muito dinheiro
voluntariamente e gasta infinita-
mente mais do que a China”, explica
um alto funcionário que trabalha na
Quinta Comissão da Assembleia Ge-
ral, encarregada das questões orça-
mentárias. “Nesse estágio, o orça-
mento é, para esta última, um
instrumento de presença, de legiti-
midade, mas não de inf luência, o que
não significa que isso não possa mu-
dar dentro de alguns anos.” Diploma-
ta chinês e ex-funcionário da Unesco,
Xu Bo até acredita que “o aumento
das contribuições obrigatórias chi-
nesas foi mais aceito do que desejado.
No DNA chinês, não gostamos muito
de dar dinheiro: preferimos mantê-lo
conosco a fim de ajudar a acabar com
a pobreza na própria China”.
Sub-representação do número de
funcionários, inf luência limitada nos
círculos em que seus interesses co-
merciais estão em jogo, fraco uso de
instrumentos orçamentários... “Po-
de-se ter a impressão de que a pre-
sença chinesa na ONU é relativa, des-
proporcional à sua economia ou
população”, observa P.F. “Porém, não
se deve esquecer que a China muitas
vezes fala como membro do G77, gru-
po de países em desenvolvimento no

qual ela lidera um pacote de 150 vo-
tos. Muitas vezes, ela não aparece na
origem de uma decisão, mas é o mo-
tor de tais decisões quando esses Es-
tados votam em assuntos que não
lhes dizem respeito diretamente.”
A missão diplomática chinesa per-
manente na sede, em Nova York, não
respondeu a nossas solicitações. Mas
Xu Bo rejeita essas ideias de voto por
procuração e de desejo de dominação:
“Sempre que há um confronto, fala-se
em ofensiva chinesa para mudar a or-
dem mundial. Isso não é verdade. En-
quanto os norte-americanos assu-
mem o papel de policiais do mundo, a
China paga seus tributos e se benefi-
cia da existência de uma instituição
como a ONU”. Essa posição lembra a
do presidente Xi Jinping, que em 22 de
setembro mais uma vez defendeu o
“multilateralismo” na Assembleia Ge-
ral da ONU. Esse multilateralismo em
versão chinesa que lhe cai tão bem...

*Jeanne Hughes é jornalista.

1 Wan Jingzhang, “La vie secrète des employés
chinois de l’ONU” [A vida secreta dos funcio-
nários chineses da ONU], Radio China Inter-
national, 20 dez. 2005. Disponível em: http://
news.cri.cn.
2 “Composition du Secrétariat: données démo-
graphiques relatives au personnel: rapport du
secrétaire général, A/74/82” [Composição
do Secretariado: dados demográficos relati-
vos ao pessoal: relatório do secretário-geral,
A/74/82], Assembleia Geral das Nações Uni-
das, Nova York, 22 abr. 2019. Disponível em:
https://undocs.org.
3 “Chief Executives Board for Coordination” [Con-
selho Diretor Executivo], ONU, 31 dez. 2009 e


  1. Disponível em: http://www.unsystem.org.
    4 “Le modèle chinois de réussite économique”
    [O modelo chinês de sucesso econômico],
    Desa, ONU, 23 fev. 2012.


5 “Jointly building the ‘Belt and Road’ towards
sustainable developments goals” [Construin-
do juntos as Novas Rotas da Seda rumo aos
Objetivos do Desenvolvimento Sustentável],
ONU, 16 ago. 2016.
6 Cf. “Bureau de l’appui aux mécanismes inter-
gouvernementaux et de la coordination” [Es-
critório de Apoio aos Mecanismos Intergover-
namentais e da Coordenação], Desa.
Disponível em: http://www.un.org.
7 “Compromised space: Bullying and blocking at
the UN Human Rights Mechanisms” [Espaço
comprometido: perseguição e bloqueio nos
Mecanismos de Direitos Humanos da ONU],
Unrepresented Diplomats Project, Bruxelas, 15
jul. 2019. Disponível em: https://unpo.org.
8 Valérie Segond, “Les étranges pratiques de la
Chine pour conquérir la FAO” [As estranhas
práticas da China para conquistar a FAO], Le
Figaro, Paris, 21 jun. 2019.
9 Martine Bulard, “À Canton, les Africains confi-
nés à la matraque” [Em Cantão, africanos são
isolados na base do cassetete], Planète Asie,
14 abr. 2020. Disponível em: https://blog.
mondediplo.net.
10 “European Parliament warns against UN Inter-
net control” [Parlamento Europeu adverte
contra o controle da internet pela ONU], BBC
News, 22 nov. 2012.
11 “Pays contributeurs en soldats et policiers”
[Países que contribuem com soldados e poli-
ciais], Domp, 31 ago. 2020. Disponível em:
https://peacekeeping.un.org.
12 Resolução adotada pela Assembleia Geral da
ONU em 22 de dezembro de 2018.
13 “Scale of assessments for the fiscal period
2020-2021” [Escala de pagamentos para o
período fiscal de 2020-2021], Onudi, Viena,
1º-3 jul. 2019. Disponível em: http://www.unido.org.
14 “Contribution to Unesco’s regular budget”
[Contribuição para o orçamento regular da
Unesco], Unesco, Paris, 1º jan. 2020. Dispo-
nível em: https://teamsnet.unesco.org.
15 “Contributors – Financial Flow” [Contribuin-
tes – Fluxo financeiro], OMS, Genebra, 2019.
Disponível em: http://open.who.int.
16 Mao Ruipeng, “China’s growing engagement
with the UNDS as an emerging nation: Chan-
ging rationales, funding preferences and futu-
re trends” [O crescente envolvimento da Chi-
na com o Sistema de Desenvolvimento das
Nações Unidas como uma nação emergente:
mudando fundamentos, preferências de finan-
ciamento e tendências futuras], Deutsches
Institut für Entwicklungspolitik, Bonn, 2020.

EM MENOS DE UMA DÉCADA...

2012 Margaret Chan, de Hong Kong, é reeleita diretora-geral da Organização Mundial
da Saúde (OMS), cargo que ocupava desde 2007. Em 2017, é substituída pelo
etíope Tedros Adhanom Ghebreyesus.
2013 Li Yong é nomeado diretor-geral da Organização das Nações Unidas para o De-
senvolvimento Industrial (Onudi), da qual Austrália, Canadá, Estados Unidos, Fran-
ça, Nova Zelândia, Portugal e Reino Unido já não fazem parte.
2014 Zhao Houlin é eleito secretário-geral da União Internacional de Telecomunicações
(UIT). Em 2018, é reeleito para seu segundo e último mandato. Ele ocupava o
cargo de vice-secretário adjunto desde 2007.
2015 Fang Liu é eleita secretária-geral da Organização da Aviação Civil Internacional
(Icao). Em 2018, é reeleita para a função até 2021. Yang Dazhu é nomeado dire-
tor-geral adjunto da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), junto com
cinco outros diretores (de nacionalidades norte-americana, marroquina, italiana,
russa e espanhola).
2017 Liu Zhenmin assume o Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais (Desa)
como secretário-geral adjunto nomeado pelo secretário-geral da ONU. Ele subs-
titui Wu Hongbo (2012-2017), que fora o sucessor de Sha Zukang (2007-2012).
2018 Xue Hanqin é eleita vice-presidente da Corte Internacional de Justiça (CIJ), pre-
sidida por Abdulqawi Yusuf (Somália). Xing Qu é nomeado diretor-geral adjunto da
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco),
dirigida pela francesa Audrey Azoulay.
2019 Qu Dongyu é eleito diretor-geral da Organização para a Alimentação e a Agricul-
tura (FAO). Hua Jingdong é nomeado vice-presidente do Banco Mundial, cujo
presidente é o norte-americano David Malpass.
2020 Wang Binying, diretora-geral adjunta da Organização Mundial da Propriedade In-
telectual (Ompi) por doze anos, concorre ao cargo de diretora-geral, mas é derro-
tada por Tang Daren, de Cingapura.

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