Le Monde Diplomatique - Brasil - Edição 161 (2020-12)

(Antfer) #1

28 Le Monde Diplomatique Brasil^ DEZEMBRO 2020


A capa de toureiro da


liberdade universitária


Se a liberdade de ensino e de pesquisa não é submetida a nenhuma forma de censura,


ela necessita também que o conjunto da comunidade universitária possa trabalhar


com serenidade. A batalha da liberdade universitária é tanto uma questão


de interesse financeiro como de grandes princípios


POR DOMINIQUE PINSOLLE*


A


s elucubrações do ministro
francês da Educação Nacional,
Jean-Michel Blanquer, a pro-
pósito do “islamoesquerdis-
mo” na universidade tiveram um
efeito que, provavelmente, não desa-
grada nem ao seu autor nem à sua co-
lega, a ministra do Ensino Superior,
da Pesquisa e da Inovação, Frédéri-
que Vidal. Enquanto o criticado pro-
jeto de lei de programação da pes-
quisa (LPR – Loi de programmation
de la recherche) estava em análise
parlamentar, a concentração nos de-
bates sobre a liberdade universitária
impediu a visualização das reivindi-
cações feitas já durante um ano por
um grande movimento de contesta-


ção no âmbito das universidades e
dos órgãos de pesquisa.
As hostilidades foram declaradas
em 31 de outubro, quando o Le Monde
publicou um artigo assinado por uma
centena de universitários apoiando
Blanquer e fustigando a suposta “ne-
gação” de uma parte de seus colegas
concernente às “derivas islamistas”
que afetaram sua própria institui-
ção.^1 As reticências para “designar o
islamismo como responsável pela
morte de Samuel Paty” [morto em
atentado praticado em outubro em
Conf lans-Sainte-Honorine] revela-
ram, segundo eles, a gravidade da si-
tuação. O comunicado intersindical
de 21 de outubro – coassinado princi-

palmente pela União Nacional dos
Estudantes da França (Unef ), ataca-
da no texto – almejava, no entanto,
explicitamente “o islamismo funda-
mentalista” e concluía que “é exata-
mente essa ideologia e aquelas e
aqueles que a seguem que devem ser
combatidos sem interrupção”.^2
Pouco importa. Os signatários
conseguiram uma dupla proeza: ali-
nhar-se por trás de um ministro em
nome de sua independência e inti-
mar Vidal, em nome da liberdade de
expressão, a estabelecer “medidas de
detecção” e uma “instância encarre-
gada de recuperar diretamente os ca-
sos de ataque aos princípios republi-
canos e à liberdade acadêmica”. A

tentativa de reproduzir os argumen-
tos da Lei Gayssot reprimindo as pro-
postas negacionistas parece dificil-
mente resistível.
A ofensiva conseguiu provocar
uma indignação coletiva, ainda mais
porque a defesa da liberdade de ensi-
no, de pesquisa e de expressão é um
dos raros assuntos que mobilizam
imediatamente uma corporação em
geral pouco combativa. O caso Vin-
cent Geisser, em 2009, dá uma ilus-
tração disso. O sociólogo do mundo
árabe e muçulmano entrou, na épo-
ca, em conf lito com o funcionário de
segurança e defesa (FSD) do Centro
Nacional de Pesquisa Científica
(CNRS), oficialmente encarregado,
entre outras coisas, de “garantir” ati-
vidades de pesquisa consideradas
“sensíveis”. Convocado diante da co-
missão de disciplina do CNRS por
faltar a seu dever de reserva, o pes-
quisador recebeu o apoio de uma pe-
tição com assinaturas prestigiosas.
O caso foi encerrado com uma sim-
ples advertência. Isso relembrou
que, na França, a “independência” e
a livre expressão” dos professores e
pesquisadores são garantias no âm-
bito constitucional desde 1984 e, ao
mesmo tempo, são limitadas na lei
apenas pelos “princípios de tolerân-
cia e objetividade”.
A indignação suscitada no mundo
universitário pela tribuna do dia 31
de outubro não contrariou as expec-
tativas nem do conteúdo nem da for-

corporação sazonal de belos aconte-
cimentos”. Na verdade, os tormentos
da vida familiar fornecem uma dis-
tração bem-vinda ao poder aparen-
temente imutável exercido por um
clã cujo status eminentemente espe-
cial garante imunidade a qualquer
forma de democracia.


CAMPEÃ DA EVASÃO FISCAL
A casa de Windsor domina uma cul-
tura em que os códigos de classe
mais refinados, do mordomo à eti-
queta dos discursos, se tornaram
uma especialidade nacional. A in-
dústria da herança real, monetizan-
do o passado e inventando tradições,
emprega mais trabalhadores que as
indústrias da pesca e da mineração
combinadas.^14 Ela é fonte de produ-
tos culturais variados e rentáveis, co-
mo filmes A rainha (2006) e O discur-
so do rei (2010), ou a série The Crown
(lançada em 2016), da Netf lix. O ator
ou a atriz que interpretam o monar-
ca sempre recebem uma chuva de
prêmios de prestígio, como se inter-
pretar um rei ou rainha representas-
se uma conquista mais notável que
interpretar qualquer outro ser hu-
mano e como se isso desse um senti-


do extra a uma instituição que, de
maneira mais ou menos ambígua, já
o tem em quantidade.
A cada ano, a família real custa ao
país 67 milhões de libras (R$ 500 mi-
lhões). Ela pratica a evasão fiscal por
meio de isenções^15 e drenagens para
locais offshore.^16 O vínculo firmado
com um clã aristocrático que contro-
la todos os circuitos das finanças tor-
nou a City de Londres ainda mais
atrativa para os sonegadores de todo
o mundo, contribuindo para a alta
vertiginosa dos preços e aluguéis na
capital. Em princípio, a rainha possui
um sexto de todas as terras do plane-
ta. Em um recente debate parlamen-
tar sobre a indústria eólica no mar,
Boris Johnson chamou o portfólio de
imóveis da monarquia, o Crown Esta-
te, de um “mestre do fundo do mar”
(14 out. 2020). A moratória sobre des-
pejos de aluguel decretada pelo go-
verno para lidar com a crise da Co-
vid-19, ameaçando jogar 55 mil
famílias nas ruas, foi suspensa em se-
tembro. Na mesma semana, soube-se
que o contribuinte pagaria ao Crown
Estate um aumento generoso para
compensar parcialmente os 500 mi-
lhões de libras esterlinas (R$ 3,5 bi-

lhões) de perdas de receita registra-
das na gestão de seu parque
imobiliário por causa da pandemia.
E, no entanto, em meio aos con-
frontos que abalaram o país nos últi-
mos anos, por causa do Brexit e da
independência da Escócia, tão inti-
mamente ligados à questão de sua
soberania, a monarquia escapa aos
olhares.

*Lucie Elven é jornalista.

1 Edward Shils e Michael Young, “The meaning
of the coronation” [O significado da coroa-
ção], The Sociological Review, v.1, n.2, Lon-
dres, 1 dez. 1953.
2 “Elizabeth R: A Year in the Life of the Queen”
[Elizabeth R: Um ano na vida da rainha],
BBC, 1992.
3 Zadie Smith, “Mrs. Windsor. The reassuring
domesticity of our head of state” [Sra. Wind-
sor. O tranquilizador caráter doméstico de
nossa chefe de Estado], Vogue, Londres,
dez. 2017.
4 Severin Carrell e Owen Bowcott, “Did John-
son lie to the Queen? ” [Johnson mentiu para
a rainha?], The Guardian, Londres, 24 set.
2019.
5 Harold J. Laski, “The responsibility of the State
in England” [A responsabilidade do Estado na
Inglaterra], Harvard Law Review, v.32, n.5,
Cambridge (Massachusetts), mar. 1919.
6 “Revisão dos poderes de prerrogativa real
executiva: relatório final”, Ministério da Justiça
Britânico, Londres, out. 2009.
7 David Cannadine, “The context, performance

and meaning of ritual: the British monarchy
and the ‘invention of tradition’” [O contexto,
desempenho e significado do ritual: a monar-
quia britânica e a “invenção da tradição”], c.
1820-1977. In: Eric Hobsbawm e Terence
Ranger (org.), The Invention of Tradition [A in-
venção da tradição], Cambridge University
Press, 1983.
8 Hilary Mantel, “Royal bodies” [Corpos reais],
London Review of Books, v.35, n.4, 21 fev.
2013.
9 Federação de 54 estados, antigos territórios
britânicos, formalmente unidos em 1949 como
uma união de países “livres e iguais”. A rainha é
reconhecida como chefe da Commonwealth.
10 Anguilla, Antígua e Barbuda, Austrália, Baha-
mas, Belize, Bermudas, Canadá, Chipre, Do-
minica, Gibraltar, Granada, Guernsey, Ilhas
Cayman, Ilha de Man, Jersey, Malvinas, Mont-
serrat, Nova Zelândia, Santa Helena, Santa
Lúcia, São Cristóvão e Neves, São Vicente e
Granadinas, Tuvalu.
11 “Harry, Meghan and Marx” [Harry, Meghan e
Marx], The Economist, Londres, 16 jan. 2020.
12 Ignacio Ramonet, “Contre le mimétisme”
[Contra o mimetismo], Le Monde Diplomati-
que, out. 1998.
13 The Daily Mail, The Express e The Sun, res-
pectivamente.
14 Sam Wetherell e Laura Gutiérrez, “It just won’t
die” [Ela simplesmente não vai morrer], Jaco-
bin, Nova York, 19 maio 2018.
15 John Harris, “‘Essentially, the monarchy is cor-
rupt’ – will republicanism survive Harry and
Meghan?” [“Essencialmente, a monarquia é
corrupta” – o republicanismo sobreviverá a
Harry e Meghan?], The Guardian, 8 maio 2018.
16 Hilary Osborne, “Revealed: Queen’s private
estate invested millions of pounds offshore”
[Revelado: fundo da rainha investiu milhões
de libras em paraísos fiscais], The Guardian,
5 nov. 2017.

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