Placar - Edição 1469 (2020-11)

(Antfer) #1

NOV | 2020 41


O jornalista e escritor Sérgio
Rodrigues — autor de O Drible
(2013), o primeiro romance nacio-
nal a calçar chuteiras, confronto
entre pai e filho mediado pela in-
contornável finta de Pelé sobre o
uruguaio Mazurkiewicz — oferece
substância à discussão ao argu-
mentar que o futebol é uma narra-
tiva tão autossuficiente que pres-
cinde da invenção. De tão falado e
associado a tantas linguagens,
torna-se quase impossível abordar
o tema de maneira original, ele
sustenta. Talvez por isso, e aqui a
assistência é nossa, a literatura se
saia melhor do que o cinema na
aventura de representá-lo — como
os três lençóis de Pelé na Rua Java-
ri, o futebol é jogado no reino da
liberdade, único na imaginação de
cada um. Sendo assim, imagem al-
guma terá a força de capturá-lo
em sua integridade e essência, a
não ser as imagens do jogo em si
— mas aí não será cinema. Muito
menos bom cinema.
Por isso Pelé é apenas um ca-
nastrão em Fuga para a Vitória

(1981), um dos últimos filmes do
mestre John Huston. Por maior
que seja o apuro nas cenas de fu-
tebol, em que o time de um campo
de prisioneiros enfrenta os ofi-
ciais nazistas em partida que en-
cobrirá uma tentativa de fuga, o
que se vê na tela é como uma jo-
gada ensaiada, artifício quase
sempre sem brilho mesmo quan-
do dá certo. Se o filme é bom? Va-
le assisti-lo, mas o futebol não
chega a ser um astro — como Sil-
vester Stallone no gol — em uma
história clássica de guerra.
Em contrapartida, o futebol
mostra toda a força narrativa a que
Sérgio Rodrigues se refere numa
ponta em O Segredo de Seus Olhos,
thriller argentino que levaria o
Oscar de melhor filme estrangeiro
em 2010. Os elementos que o cons-
tituem — o poder do acaso, a ten-
são do confronto, o tempo mítico
que instaura — estão todos lá no
espetacular plano-sequência de
quase cinco minutos em um dia de
jogo no estádio do Huracán. A im-
portância do evento em si é lateral
para a história, mas seu clímax
não se estabeleceria tão poderoso
de outra forma. “As pessoas podem
trocar tudo: de cara, de casa, de fa-
mília, de namorada, de religião, de
Deus”, diz o parceiro de Ricardo
Darín pouco antes de partirem pa-
ra o jogo, intuindo a melhor pista
para chegar ao assassino que per-
seguem — “mas não de paixão”. Se
o filme é bom? Sim, mas não se po-
de dizer um “filme de futebol”.
Outro prodígio técnico a se va-
ler da força narrativa do jogo pa-
ra sustentar um filme apenas
correto é a sequência final de
O Milagre de Berna (2003), na deci-
são da Copa de 1954, em que a
Alemanha bateu a supostamente
imbatível Hungria de Puskás (leia
o spoiler completo na pág. 58).
O brilho aqui não vem, evidente-
mente, do uso de uma vitória im-
provável como metáfora para a

No documentário de Joaquim Pedro
de Andrade, Garrincha é o Macunaíma
do futebol: um herói improvável

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