O Tempo (2020-12-07)

¬PATRÍCIA CASSESE

¬Em “Morte de Uma Ba-

leia”, crônica publicada em

1968, Clarice Lispector ma-

nifestou enfaticamente o

seu repúdio à ideia da mor-

te. Mas admitiu já a ter ex-

perimentado um sem nú-

mero de vezes – no caso,

não a do corpo, claro, mas a

da alma. “Morri de muitas

mortes e mantê-las-ei em

segredo até que a morte do

corpo venha, e alguém, adi-

vinhando, diga: esta, esta

viveu”. Na sequência, pros-

segue: “Porque aquele que

mais experimenta o martí-

rio, é dele que se poderá di-

zer: este sim, este viveu”.

Há quase 43 anos, num

dia 9 de dezembro, Clarice

partia nos braços daquela a

quem não dedicava um sen-

timento menos brando que

o “ódio” (palavra por ela

empregada). Foi embora

novíssima, apenas um dia

antes de completar 57

anos. Mas não sem deixar

um legado profícuo e já re-

conhecido à época, e que se-

gue arregimentando mais e

mais admiradores – não só

no Brasil, mas mundo afora.

Gente que devora sua plural

escrita com a indefectível cer-

teza: “Esta sim, esta viveu”.

E é à “vida vivida” dessa

ucraniana batizada como

Chaya Pinkhasovna Lispec-

tor que o Brasil, país para on-

de ela veio com apenas 2

anos de idade, dedica, nesta

semana, um sem número de

merecidas homenagens. E

não pelo aniversário de mor-

te. Basta fazer as contas para

entender o motivo, e a mate-

mática, aqui, é elementar:

43 anos de morte, 57 de vi-

da. Há cem anos, pois, nas-

cia Clarice Lispector, jorna-

lista, contista, romancis-

ta, ensaísta e até mesmo

artista plástica. Da pri-

meira obra – “Perto

do Coração Selva-

gem” (1943), pu-

blicada quando

tinha apenas 24

anos – até “A

Hora da Es-

trela”

(1977), a

“bruxa”,

nas pala-

vras do

amigo Otto Lara Rezende, se-

gue cada vez mais viva.

“É uma literatura que não

envelhece nunca, renovando-

se sempre à medida que se re-

nova seu público leitor. Um es-

pelho de letras em que to-

dos nós podemos con-

templar nossas pró-

prias faces no re-

flexo mesmeri-

zante da al-

ma de

Clari-

ce”, aponta Pedro Vasquez,

responsável pela obra da auto-

ra dentro da editora Rocco,

que de-

tém os direitos de publicação

de Lispector. A casa editorial,

aliás, começou no ano passa-

do, já no bojo do centenário,

a lançar novas edições

dos livros dela, inician-

do com as publicações

da década de 1940 –

“Perto do Coração

Selvagem” (1943),

“O Lustre” (1946) e

“A Cidade Sitiada”

(1949). A cereja do

bolo foi que o novo

projeto gráfico (as-

sinado por Victor

Burton) traz, nas ca-

pas, recortes de telas

feitas por Clarice – ela

pintou 22 quadros ao

longo de sua vida (leia

mais no quadro abaixo).

Na orelha dos títulos, o lei-

tor encontra a íntegra da tela

retratada na capa, enquanto

na contracapa, a foto de Cla-

rice correspondente à déca-

da em que cada livro foi origi-

nalmente publicado.

Neste momento, passado

quase um ano do início das

ações comemorativas, a

Rocco lança a nova edição

de “A Hora da Estrela”, com

posfácio inédito de Paulo

Gurgel Valente (filho de Cla-

rice), e a de “A Via Crucis do

Corpo”. E Pedro Vasquez já

tem calço para avaliar a re-

cepção da reedição junto ao

público. “O conjunto da

obra foi muito bem recebi-

do, e, na minha opinião, por

três fatores básicos: o proje-

to gráfico, os posfácios inédi-

tos (especialmente enco-

mendados para esse mo-

mento de comemoração a

grandes especialistas na

obra de Clarice, como seus

biógrafos Benjamin Moser e

Nádia Battella Gotlib, ou

por nomes de destaque da li-

teratura brasileira como

Nélida Piñon, Rosiska

Darcy de Oliveira e Marina

Colasanti) e, finalmente, pe-

las capas reproduzindo os

quadros dela, o que revelou

ao grande público essa face-

ta desconhecida de sua pro-

dução, a de pintora”.

Série de ações em todo o país celebra centenário de uma das maiores escritoras da língua portuguesa

Site bilíngue

Clarice, esta segue viva

Presente para o leitor

Toda a obra de Clarice Lispector vem sendo reeditada,

desde desde o fim do ano passado pela Editora Rocco. As

novas capas foram ilustradas com pinturas da própria

autora que, ao longo da vida, pintou 22 telas.

Homenagens

Literatura

Está prevista para o dia 10 a

entrada no ar do novo site

dedicado a Clarice Lispector

do Instituto Moreira Salles.

Como é de conhecimento

pelos aficionados por

literatura, desde 2011 o IMS

celebra o aniversário da

autora com o seu “Hora de

Clarice” – a exemplo do “Dia

D”, dedicado a Carlos

Drummond de Andrade. O

site, por sua vez, foi criado

em 2012, a partir da

constatação de que não

havia, até ali, um banco de

dados 100% confiável sobre

a escritora, conta Elizama

Almeida, assistente cultural

do departamento de

literatura do IMS. Com o

marco do centenário, o site

passa a ter versão bilíngue:

português e inglês. “Hoje, há

leitores clariceanos em todo

o mundo. E fomos nos dando

conta de que não dava mais

para falar de Clarice só em

português, dada essa

dimensão ampla”, diz.

Eventos marcam o

10 de dezembro

7

No dia do aniversário

de Clarice, 10 de de-

zembro, a Rocco preparou

uma programação online

que inclui podcast, leitura de

carta por Zélia Duncan, exibi-

ção de minidoc e até uma vi-

gília, que se estenderá até às

3h da manhã do dia 11. Às

15h, será a vez de uma atra-

ção que tem Minas Gerais co-

mo cenário: a retransmis-

são, no Facebook, do debate

da escritora Guiomar de

Grammont com Nélida

Piñon, dentro da programa-

ção do Fórum das Letras de

Ouro Preto.

Como outros eventos lite-

rários que aconteceram este

ano, o Fórum homenageia o

centenário da escritora, e

tem como tema o título de

sua última obra lançada

em vida, “A Hora da Estre-

la” (1977) – lembrando

que, postumamente, foi lan-

çado “Um Sopro de Vida”, a

cargo de Olga Borelli, secre-

tária e assistente da escrito-

ra. “Escolhemos o tema ‘A

Hora da Estrela’ de um lado

pensando na própria Clari-

ce como essa estrela de bri-

lho perene e revelador,

diante da pequenez da con-

dição humana”, expõe

Guiomar de Grammont,

coordenadora geral do Fó-

rum das Letras.

Os centenários da escri-

tora Ruth Guimarães e de

João Cabral de Melo Neto

também são lembrados em

atividades do evento, que

será online e gratuito. (PC)

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20 | O TEMPOBELO HORIZONTE|SEGUNDA-FEIRA, 7 DE DEZEMBRO DE 2020

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