O Tempo (2020-12-07)

(Antfer) #1
ACERVO CASA DE RUI BARBOSA/DIVULGAÇÃO

“Ela pode nos tirar o chão”

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O ator mineiro Odilon
Esteves descobriu Clari-
ce Lispector pelo teatro –
mais precisamente, no início
dos anos 90, ao assistir a
uma montagem de “A Hora
da Estrela” dirigida por Cida
Falabella. Quando assistiu
ao espetáculo, rendeu-se de
vez. “A primeira persona-
gem que me causou uma
identificação grande foi Ma-
cabea. Talvez por eu ser do
Norte de Minas – apesar de a
personagem ser nordestina,
é uma figura muita reconhe-
cível nesse imaginário do in-
terior do Brasil, essa mulher

de uma outra ordem de soli-
dão”, disse. Depois vieram os
contos. E as crônicas, as entre-
vistas... Totalmente rendido à
autora, Esteves formulou um
projeto dedicado a ela, que
apresenta agora: “Na Sala
com Clarice”, que estreou on-
tem, virtualmente.
Para as apresentações, são
oferecidas ao público 12 op-
ções por temas. Cinco deverão
ser escolhidas e apresentadas
pelo ator, numa sequência que
deve durar de 60 a 90 minu-
tos, variando em função das es-
colhas do dia. A leitura será
apresentada ao vivo pela plata-

forma Zoom até 31 de janei-
ro (com breve pausa entre
20/12 e 9/1), e os ingressos,
gratuitos, podem ser solicita-
dos pelo site do Sympla.
Odilon conta como se
deu a escolha dos textos.
“Não teve um critério racio-
nal. Foi assim: bateu no
meu coração de alguma for-
ma ou me divertiu ou me
deixou diante de um misté-
rio desses que a Clarice nos
propõe tantas vezes, mas
que me envolveu... E fui per-
cebendo que esse leque ti-
nha ficado variado. Cada
obra entrou na minha vida

numa hora distinta, por ra-
zões distintas, de modos dis-
tintos, e isso de alguma for-
ma está aqui, em um peque-
no recorte de um panorama
multifacetado.”
Vale frisar que a apresenta-
ção não ficará em streaming.
“Vai ser efêmero, como é o
teatro”, diz Odilon. “Impor-
tante dizer, ainda, que eu es-
tou apresentando a minha lei-
tura subjetiva desses textos,
que é o que posso oferecer.
Não é exatamente uma adap-
tação para o teatro, no senti-
do em que você corta, reescre-
ve, modifica o texto. E a gente

sabe que todo leitor lê o tex-
to com seus olhos. Aqui, a
obra de Clarice será lida pe-
los meus. Pode ser que enri-
queça para alguns e empo-
breça para outro, isso é o ris-
co. Mas o caminho foi um
pouco esse”. (PC)

Na Sala com Clarice. De 6 a
20 de dezembro e de 9 a 31
de janeiro. Sábados às 20h e
domingos às 19h. Sessão
especial “Centenário de
Clarice”: 10/12 (quinta-feira)
às 20h. Sessões com
intérprete de LIBRAS: 18/12 e
29/01 (sextas-feiras) às 20h

¬PATRICIA CASSESE
¬Que mistérios tem Clari-
ce? Para Nádia Battella Go-
tlib, uma das maiores autori-
dades na escritora, o culto à
obra dela tem, de pronto,
duas explicações fáceis de
serem apontadas: excelên-
cia literária e, ao mesmo
tempo, produção textual di-
versificada. “A literatura de
qualidade é a literatura que
você volta para ela, então, a
obra de Clarice tem essa coi-
sa, é uma escrita para a qual
você volta porque é boa”. “E
por ser diversificada, é óti-
mo, por exemplo, ler as
crônicas, porque são textos
curtos, atendem a essa ex-
pectativa de leitura mais
rápida. Mas tem os contos,
os romances, as páginas fe-
mininas, a literatura infan-
til... E tem o que brinco ser
‘a turma de um só’, uma con-
ferência, uma peça tea-
tral...”, diz ela, que está
com a agenda lotada em
função da efeméride, seja
em lives e webinários, inclu-
sive organizados em outros
países, como Portugal e a
própria Ucrânia.
Nádia lembra que Clarice
costumava dizer que costura-
va ‘pra dentro’. “Anos atrás,
era muito comum que se
anunciasse o serviço de al-
guém que costurava pra fo-
ra, e a Clarice brincava dizen-
do o contrário. Ou seja, sua
escrita vem das entranhas. E
ela tinha esse talento de per-
ceber os mecanismos da
mente humana, mesmo sem
ser psicóloga, psiquiatra ou
psicanalista”.

Editor responsável pela
obra da autora, Pedro Karp
Vasquez acrescenta o fato de
Clarice ocupar um lugar de
destaque tanto entre o público
leitor quanto junto à comuni-
dade acadêmica. No primeiro
caso, ele credita a popularida-
de crescente a duas razões
principais: “o público evoluiu,
e, hoje, está mais sintonizado
com as questões abordadas na
obra dela do que os contempo-
râneos da autora”. E pelo fato
de sua literatura ter valor pere-
ne e universal, “espelhando
verdades e questionamentos
comuns aos seres huma-
nos de todos os tem-
pos e latitudes”.
“A obra de
Clarice Lis-
pector tem
uma estra-
nheza
diante do
cotidiano
que é sur-
preenden-
te. As vi-
vências
ecoam em
suas persona-
gens, como se elas
estivessem sempre à
flor da pele, apreendendo as
significações mais profundas
da experiência, para além
das palavras. Como os ani-
mais, que Clarice tanto ama-
va, em sua imanência pura. E
essa experiência do indizível
arrebenta, muitas vezes, na
forma de revelações epifâni-
cas, tão intensas que nos des-
norteiam. Clarice pode nos ti-
rar o chão”, afirma a escrito-
ra Guiomar de Grammont.

Genialidade


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O mais recente livro do
crítico literário, biógrafo
e ensaísta Italo Moriconi - “Li-
teratura, Meu Fetiche” (Cepe,
228 páginas) - traz um ensaio
dedicado à obra de Lispector.
Na verdade, a um recorte em
particular. “Recorto, na mi-
nha leitura de ‘Hora da Estre-
la’, essa fase única que chamo
de ‘final’”. Mas, na verdade,
no lugar de fases da escrita,
ele prefere falar em faces. “E a
meu ver, a escrita dela tem
duas, uma mais radical (vista
em livros como ‘A Paixão Se-
gundo GH’ e ‘Água Viva’) e ou-
tra mais clássica ou classicizan-
te (cujo ponto máximo são os
contos de ‘Laços de Família’)”.
No entanto, Moriconi con-
segue enxergar características
que toda a produção dela tra-
duz com precisão. “O fato de
ser uma escrita radical da in-
timidade, de ser uma inteli-
gência do sentimento – a
‘scrita pensante’, de que fala
(o escritor) Evando Nasci-
mento – e de trazer uma poé-
tica inusitada e original, com
metáforas e digressões ge-
niais, sempre, a meu ver, mo-
vidas por certo humor, mui-
tas vezes escondido”, diz.
A devoção da jornalista, es-
critora e editora Leida Reis à
obra de Lispector fez com que
decidisse batizar a filha com o
nome da escritora. “Poucos
nomes me tornaram a escrito-
ra, a leitora, a pessoa que sou
hoje. Um deles é Clarice Lis-
pector. Eu a conheci pelas
crônicas nos livros didáticos,
nos tempos de ginásio e colé-
gio. Uma definição com que
me identifiquei para sempre
foi ‘sou uma tímida ousada’.
Tímida eu já era, decidi ser ou-
sada. Creio ser ‘A Paixão Se-
gundo GH’ o melhor livro por
mim já lido. Assim, eu só pode-
ria ter colocado na minha fi-
lha o nome de uma mulher
que representa a minha pai-
xão pela vida”, diz, acrescen-
tando que a herdeira foi brin-
dada também pelo sobreno-
me que ela havia escolhido pa-
ra o seu primogênito, Gabriel:
Poesia. “Ficou, pois, Clarice
Poesia”, conta. (PC)

Literatura


Especialistas e admiradores discorrem sobre a excelência e a diversidade da escrita de Clarice Lispector


Clarice brincava dizendo que “costurava pra dentro”, ou seja, sua escrita vem das entranhas

“Na Sala com Clarice”


Um recorte da obra revista pelo olhar de um ator


Uma


poética


inusitada


e original


“A obra de Clarice
Lispector tem uma
estranheza diante
do cotidiano que é
surpreendente”

Guiomar de Grammont

MAGAZINE O TEMPOBELO HORIZONTE| SEGUNDA-FEIRA, 7 DE DEZEMBRO DE 2020 | 21


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