Viaje Mais - Edição 174 (2016-11)

(Antfer) #1

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NA BAGAGEM


As histórias vividas pela redação


VIAJE MaiS

E


les formam um quar -
te to inseparável. Há
anos ficam guarda -
dos, juntos, bloco de anota -
ções, car tões de visita, passa -
porte e câmera. Todos na mes -
ma gaveta, um ao lado do ou -
tro, só esperan do a próxima
viagem. O momen to de se -
rem libertados do ar má rio e
ga nharem o mundo costuma
ocorrer duas horas antes de
eu partir para o aero porto.
Bas ta estarem os quatro agar -
rados a mim para ter a im -
pressão de que qualquer via -
gem correrá sem perrengues.
Na minha mais recente
jornada, entretanto, um deles
resolveu se rebelar. A câmera,
esse apetrecho que prova que
estivemos lá (seja qual for o
“lá”), simplesmente se negou
a funcionar. Liguei e des liguei,
tirei a bateria, apertei todos
os botões... e nada. Bateu o
desespero. Nessa investigação
às pressas, sem tempo hábil
para levá-la a uma assistência
técnica, descobri que o que
não funcionava era a tela
LCD, ou seja, a câmera era
capaz de fazer fotos, mas eu
não conseguiria ver o que
estava registrando. Talvez,
nesse estado, ela não tivesse
serven tia alguma na viagem.
Mas o inseparável equipa -
mento foi comigo assim mes -
mo, meio capenga, na espe -

Fotografia vintage


PORNATÁLIA MANCZYK

rança de que seria apenas
uma revolta momen tânea.
Não foi. Mas mal sabia eu
que a indisciplina da câmera
me faria repensar o olhar.
No primeiro jantar dessa
viagem, um impecável prato
de comida foi servido. O
linguado vinha à mesa cober -
to por amêndoas laminadas
ao lado de um purê de batatas
e molho pesto, e pedia para
ser fotografado. Enquanto o
grupo de jornalistas sacava a
máquina e o clicava desvaira -
damente – coisa que certa -
mente eu faria caso minha
câmera estivesse em pleno
funcionamento –, timida -
mente tirei a máquina da
bolsa. Mirei aquele peixe
colocando o sentido da visão
para trabalhar como há tem -
pos não fazia. Afinal, eu não
teria a grande chance provida
pela fotografia nos dias atuais:
ver a imagem instantanea -
mente e, caso não gostasse
do resultado, mudar o ângulo
do clique, mesmo que dois
milímetros para a esquer da.
Percebi que a toalha de mesa
com bordados de flores em
preto e branco deveria apare -
cer no enquadramento para
contrastar com o bege quase
branco daquele peixe bri -
lhante. Notei também que o
verde do molho pesto adi -
ShutterStock cio naria o tom colorido que

faltava àquela composição.
Então cliquei uma vez apenas
e guardei a câmera. E assim
continuei por dias: observan -
do atenta mente ao meu redor
e fazen do uma foto só.
Ainda mereceriam uma
infinidade de cliques o brinde
com espumante e a risada
com os novos amigos no topo
de um mirante. Ou ainda o
parreiral que parecia seguir
ao hori zonte iluminado pela
lua que nascia no fim do dia.
E tam bém os barris de vinho
que, como tesouros escondi -
dos, há décadas ocupam a ca -
ve escura das vinícolas. Mas,
dessa vez, esses momentos
foram integral e intensamente
vividos. Não competiram,
em nenhum momento, com
a visão através das lentes.
Na volta, a ansiedade para
ver essas imagens clicadas
com uma overdose de con -
centração era imensa. Só em
casa, o cartão de memória foi
plugado ao computador para,
como na época do fil me,
finalmente revelar o que o
olhar havia vislumbrado. A
maioria das fotos estava, sim,
em ordem. Mas esse resulta -
do já não importava. Quando
o momento é re gistrado co -
mo deve ser, muito além da
câmera, a memória de uma
viagem não fica con ser vada
apenas na fotografia.
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