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DEMETRIO MAGNOLI - Vale tudo


Banco Central do Brasil

O Globo/Nacional - Opinião
segunda-feira, 11 de janeiro de 2021
Cenário Político-Econômico - Colunistas

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O governo Bolsonaro, sabotador profissional de cada
uma das medidas restritivas destinadas a conter a
pandemia, decidiu subitamente adotar uma iniciativa
sanitária extremada que viola o direito fundamental dos
brasileiros de regressar ao país. O veículo do crime é a
Portaria 648, de 23 de dezembro. Ela exige, de todos os
passageiros de voos destinados ao Brasil, a
apresentação de teste PCR negativo no embarque.


Assinada pelo ministro André Mendonça, da Justiça, por
Eduardo Pazuello, do Ministério da Saúde, e por
Antônio Barra Torres, da Anvisa, a portaria é um
atestado de analfabetismo funcional. No artigo 7,
aparece a exigência ilegal. Contudo, antes, o caput
explicita que o documento somente "dispõe sobre a
entrada no País de estrangeiros", uma limitação de
abrangência reafirmada no artigo 3, segundo o qual "as
restrições de que trata esta Portaria não se aplicam ao
brasileiro, nato ou naturalizado". O que vale, afinal?


Nessas plagas por onde cavalgou Abraham Weintraub,
esqueça a lógica interna do texto. "Um manda, e o outro
obedece", ensina o rebaixado general Pazuello, um
filósofo da nacionalidade. Assim, na prática, explica o


Itamaraty, devem-se ignorar tanto o caput quanto o
artigo 3. Vale o artigo 7, que efetivamente desloca o
controle imigratório brasileiro da PF para as companhias
aéreas, numa modalidade inédita de parceria público-
privada. Sem o PCR negativo realizado até 72 horas
antes do embarque, brasileiros não retornam - a não
ser, claro, a bordo de jatinhos privados, pois a portaria
renega o princípio da igualdade perante a lei.

E se, em algum lugar do mundo, não há teste disponível
no prazo definido? Ou se o teste dá resultado positivo?
Nessas hipóteses, o cidadão terá embarque recusado -
e deve reclamar ao bispo do aeroporto.

A portaria infringe o mais básico direito fundamental de
nacionalidade, que é voltar à pátria, e desafia a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, cujo artigo
13 assegura a todas as pessoas "o direito de regressar
ao seu país". Bolsonaro trocou "a pátria acima de tudo"
por "o vírus acima de todos". Numa decisão liminar, o
sábio ministro Humberto Martins, do STJ, confirmou a
validade do vale-tudo, invocando a "saúde pública". Ele
assinaria a portaria, expondo falhas educacionais que
se estendem do curso de Direito às aulas de
interpretação de texto do ensino médio.

Há muito mais coisas erradas entre nós do que
imaginam os indignados com Bolsonaro. Analistas
conceituados sustentam que a portaria está correta -
menos o caput e o artigo 3. Basicamente, argumentam
que a saúde pública, um direito coletivo, sobrepõe-se
aos direitos individuais, inclusive os fundamentais. Que
tal fuzilar portadores do coronavírus para reduzir os
contágios?

Pandemias enlouquecem pessoas sãs. Disseram por aí
que, especialmente no caso de um PCR positivo, a
proibição de embarque é medida indispensável. A
opinião, inspirada por um distraído senso comum,
sublima o fato conhecido de que não se solicitam testes
nos voos domésticos (que são bastante seguros, pois
todos usam máscaras, e o ar das aeronaves é trocado
em breves intervalos).
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