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(Antfer) #1

CACÁ DIEGUES - Uma nova democracia


Banco Central do Brasil

O Globo/Nacional - Opinião
segunda-feira, 11 de janeiro de 2021
Cenário Político-Econômico - Colunistas

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Pouco antes da conquista do planeta pelo coronavírus,
pegava fogo o debate sobre a crise da democracia. Da
versão política de Steven Levitsky à nênia econômica
de Thomas Piketty, os pensadores ocidentais se
dividiam entre a desconfiança num sistema de lógica tão
frágil e a inesperada ascensão de gente como Boris
Johnson, Matteo Salvini e sobretudo Donald Trump.
Este último trazia a chave que abriu a caixa de Pandora
do delírio antidemocrático, iniciado com a crise de 2008.
A decadência desse baile de máscaras ideológico nos
pegaria em cheio - a eleição, no Brasil, de Jair
Bolsonaro, dez anos depois da inauguração dos novos
tempos.


Como disse Manuel Castells, "a desconfiança nas
instituições (...) nos deixa órfãos de um abrigo que nos
proteja em nome do interesse comum". Não há
interesse comum quando os "representantes do povo"
administram seus próprios sonhos em nome das
sociedades que supostamente representam. O
movimento antidemocrático é a inversão da energia
popular: não cabe aos líderes realizar os "sonhos do
povo", mas orientar o povo sobre quais devem ser seus
sonhos. É daí que nascem os "brexits", rompimentos


indesejáveis, xenófobos e populistas, que não podem
ser condenados por ter sido escolhidos por eleitores.

O surgimento de um personagem excessivo, narcisista
e grosseiro como Bolsonaro, que chega ao poder com
uma ideologia semelhante à de Trump, pretende liberar
energias reprimidas. E nos ameaça, para o futuro
próximo, com algo parecido com a invasão do Capitólio.
"A chave do sucesso de Trump", escreve MattTaibbi,"é
a ideia segundo a qual as velhas regras de decência
foram feitas para os perdedores que não têm o coração
e a coragem de ser eles mesmos". Essa é a mensagem
do trumpismo numa era "narcisista de massa", bem
adequada a ela. O apoiador herda, por transição
natural, o poder do apoiado, o herói político que o
salvará não apenas da fome, mas também da
insignificância de onde só pode se embasbacar com o
universo estratosférico dos heróis inatingíveis da
Marvel.

Foi o vírus que nos salvou desse mundo de mentira,
dessa ficção de blockbuster direitista. A tragédia da
Covid-19 nos fez voltar à realidade, trocar o papo
enfeitado da política pelo discurso óbvio da
sobrevivência da humanidade.

No Brasil do século XIX, por ocasião da Guerra do
Paraguai, o governo imperial obrigara cada província a
enviar uma percentagem de sua população para a luta.
Os senhores de terra prometiam então a seus escravos
alforria imediata a quem fosse à guerra no lugar deles.
A maior parte desses "voluntários" acabava morta,
esquecida no campo de batalha; e os que retornavam
voltavam aos poucos à condição de escravos, numa
sociedade em que não havia, para eles, outra coisa a
fazer para ter um teto e matar a fome. É como se a
escravidão estivesse em sua natureza e pudesse ser
chamada de democracia, já que dependia apenas da
vontade dos que a exerciam.

O melancólico livro de David Runciman, sobre o fim da
democracia liberal, nos afirma, logo no início, que "nada
dura para sempre". E acrescenta o que nega ao longo
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