Clipping Banco Central (2021-01-13)

(Antfer) #1

Fila única para a vacina


Banco Central do Brasil

Folha de S. Paulo/Nacional - Opinião
quarta-feira, 13 de janeiro de 2021
Cenário Político-Econômico - Colunistas

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Autor: Diogo R. Coutinho, Octdvio Luiz Motta Ferraz e
Conrado Hübner Mendes


Os argumentos a favor da vacinação privada no Brasil
podem soar bastante plausíveis à primeira vista. Diante
de um governo federal omisso e incompetente, parece
irracional e até mesmo injusto que se proíba a oferta de
vacinas pelo setor privado.


Quem pode pagar aliviaria o SUS e aumentaria o
número de vacinados na população. Um cenário em que
aparentemente ninguém perderia. Mas a questão não é
tão simples, por diversas razões que se entrelaçam.


Em primeiro lugar, porque vacinas não são bens
médicos de consumo e benefício individual como, por
exemplo, uma operação de cataratas ou a colocação de
uma prótese. Vacinas só funcionam com a imunização
coletiva, o que demanda inoculação de um número
enorme de pessoas (entre 60% e 95% da população, a
depender da eficácia da vacina e de outros fatores,
segundo a Organização Mundial da Saúde).


Ninguém está imune até que a comunidade esteja


imune. Nem mesmo os afortunados que conseguem
garantir sua dose antes no sistema privado - na melhor
das hipóteses, algo em torno de 25% a 30% de
brasileiros com plano de saúde. Se o vírus não é
eliminado, pode infectar até mesmo os já vacinados
(lembre-se de que nenhuma vacina tem 100% de
eficácia) e sofrer mutações que o tornem ainda mais
pernicioso, como já está ocorrendo.

Mas a vacinação de um quarto da população, se tanto,
já não seria uma enorme ajuda? Não diminuiria o ônus
do Estado?

Não necessariamente. Num contexto de escassez de
doses de vacina como o atual, a vacinação privada
inevitavelmente competiria com a pública. Aumentaria,
não diminuiria, o ônus do Estado. Mesmo que empresas
privadas comprem apenas lotes de laboratórios que não
estejam em negociação com o governo no presente
momento, os riscos não desaparecem. O sistema
público precisará ampliar seu rol de fornecedores para
atender a toda a população. Se estes já estiverem
presos a contratos com clínicas privadas, as opções
diminuem e os custos aumentam. A hipótese de o
Estado não estar interessado na vacina A ou B,
liberando-as para o mercado, vira profecia
autorrealizável.

A esses problemas de competição predatória entre
sistema público e privado no meio de uma emergência
sanitária somam-se outros, de natureza ética e
estratégica. A retórica de que a vacinação privada não
implicaria "furar a fila" - mas apenas criar uma "outra
fila", ou que se opor à vacinação privada não passa de
"purismo ideológico"- só faz sentido numa sociedade em
que noções de igualdade e solidariedade abandonaram
o vocabulário moral. Quando se trata de bens coletivos
como vacina, transplante de órgãos ou segurança
pública, somente a fila única passa no teste da
decência. Esse consenso alcança até mesmo países
liberais sem sistemas universais de saúde, como os
EUA.
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