Viaje Mais - Edição 175 (2015-12)

(Antfer) #1

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NA BAGAGEM


VIAJEMAIS

SHUTTERSTOCK

Papo aéreo


PORROBERTO ARAÚJO

As histórias vividas pela redação


minúsculas. Voltava dos Esta -
dos Unidos, depois de esta giar
em um famoso hos pital ve te -
rinário. Ah, então, você gos ta
de ca chor rinhos e ga tinhos?,
arris quei. Que na da. Isso era
pa ra as fracas: ela era ve teri -
nária de cavalos. Ado rava fazer
partos difíceis e ci rurgias com -
plexas em cavalos de raça. Eu,
de olhos arrega lados, imagi na -
va aque las mãos de criança aju -
dando éguas nervo sas no ru de
traba lho de parto de futu ros
cam peões no jóquei. Não com -
bi na va, mas por que al guém
mentiria para um estra nho?
Indo ao Japão, me intri gou
que um coreano não tira va os
olhos de mim. Estava des -
confiado e escondido atrás de
uma cortina de silêncio. Só que
a viagem era muito longa. Em
uma escala, reabriu a “janela
de oportunidade”. Fa lamos.
Relaxou quando con tei que era
jornalista e mostrei a revista na
qual tra balhava. Criou coragem
e perguntou:
“Seus pais deixam você
usar bigode?”
Eu, que já tinha filhos
criados, nada entendi. Sem
jeito, me explicou que na ci -
dade dele só os fora da lei usa -

vam bigode. Ainda bem que
eu ia para o Japão, não para
a Coreia. Senão teria de vol -
tar para casa sem bigode ou
ninguém me daria entre vistas
e arruinaria meu trabalho.
Sempre me lembro de um
ra paz que conheci numa via -
gem de Nova York a Seattle.
Che gou, ajeitou a bagagem,
pe diu licença, sorriu e disse a
fra se que nunca mais esque ci:
“Já que vamos ser vizi -
nhos, olá!”.
Foi uma amizade instan -
tânea. Me contou a vida. Tra -
balhava na Microsoft e estava
se separando. Quando soube
que eu havia me divor cia-
do duas vezes, a cum pli cidade
se estabeleceu.
Trocamos cartão, mas
nunca mais nos falamos. Aliás,
de todos os meus vizi nhos de
assento de avião, ja mais voltei

a falar com nenhum. Mas isso
não é re gra. Tenho um amigo,
o La ner, que se casou com
uma vi zinha de poltrona que
co nheceu em um voo de Lon -
dres a São Paulo.
Até faz sentido. São mais
de dez horas nas quais você
toma um drinque, come, dor -
me, ronca, vai ao banhei ro,
divide toda a sua inti midade
com um desconhe cido ou
des conhecida. Po rém, quase
sem pre a amizade evapora
quando o avião ater rissa.
Vem a preo cupação com a
papela da do desem barque,
o pas sa por te, as ma las, a al -
fândega, a família... Vizinho
de pol trona? Que vizinho?
Corre o risco da lembrança
só voltar muito tempo de -
pois, quando sua edi tora pe -
dir para você escrever uma
crônica sobre papos aéreos.

C


edo ou tarde o seu
cotovelo vai duelar
com o cotovelo do
vizinho. Talvez o apoio de
braços em aviões seja mais
disputado do que um palmo
de areia quente no Oriente
Mé dio. O vencedor o toma
para si, enquanto ao outro
resta cru zar os braços, sem ter
onde descansar.
A única saída para quem
viaja sozinho é gesti cu lar em
uma animada conver sa. O
difícil é que os dois – vo cê e
esse estranho que está co -
ladinho em você – deci dam
pelo diálogo. Há uma mi nús -
cula “janela de opor tuni da de”
para arriscar puxar um pa-
po, que é quan do o seu vizi-
nho (ou sua vi zinha) está se
acomo dan do.
Perdi uma conversa quan -
do viajei para Amsterdã ao
lado de um padre. Sorriu
quan do chegou, mas eu man -
ti ve a cara fechada. Depois de
um vinho, fiquei com von tade
de trocar uma ideia, porém
era tarde demais. Não olhou
mais na minha cara. De vin -
gan ça, peguei meu iPad e es -
cre vi um conto sobre as aven -
turas de um religioso na per -
mis siva Amsterdã. Fez loucuras
aquele padre na minha ficção.
Fui mais feliz ao puxar
conversa com uma veteri nária.
Era novinha, frágil, e me cha -
maram a atenção suas mãos
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