National Geographic - Portugal (2021-02)

(Antfer) #1

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Além dos números, existem grandes conse-
quências: muitos vírus trazem vantagens adap-
tativas à vida na Terra, incluindo à vida humana.
Não poderíamos prosseguir sem eles. Não te-
ríamos emergido do lodo primordial sem eles.
Há duas secções de DNA com origem em vírus
que residem actualmente no genoma dos seres
humanos e de outros primatas, sem os quais a
gravidez seria impossível. Aninhado entre os
genes dos animais terrestres, existe DNA viral
que ajuda a embalar e armazenar as memórias
em minúsculas bolhas de proteína. Outros ge-
nes ainda, adoptados de vírus, contribuem para
o desenvolvimento dos embriões, para a regula-
ção do sistema imunitário e para a resistência ao
cancro, efeitos importantes que só agora come-
çam a ser conhecidos. Na verdade, os vírus de-
sempenharam papéis essenciais na fase inicial
das grandes transições evolutivas. Se eliminás-
semos todos os vírus, como na nossa especula-
ção inicial, a enorme diversidade biológica que
agracia a vida no nosso planeta, desabaria como
uma belíssima casa de madeira da qual todos os
pregos fossem abruptamente retirados.
Um vírus é como um parasita, mas, por vezes,
esse parasitismo assemelha-se mais a uma sim-
biose, uma dependência recíproca que benefi-
cia o visitante e o hospedeiro. Tal como o fogo,
os vírus são um fenómeno nem sempre exclusi-
vamente bom ou mau: podem trazer vantagens,
ou causar destruição. Depende do vírus, da si-
tuação, do nosso ponto de referência. São os an-
jos negros da evolução, formidáveis e terríveis.
É isso que os torna tão interessantes.


P


ARA AVALIARMOS a diversidade dos
vírus, temos de começar pelos funda-
mentos daquilo que são e daquilo que
não são. É mais fácil dizer aquilo que
não são. Não são células vivas. Uma célula, do tipo
que se agrupa em grande número para formar o
corpo do leitor, ou o meu, ou o corpo de um polvo,
contém maquinaria avançada para construir pro-
teínas, produzir energia e executar outras funções
especializadas. Varia consoante a célula em ques-
tão pertença a um músculo, a um xilema ou a um
neurónio. As bactérias também são células e têm
atributos semelhantes, embora muito mais sim-
ples. Um vírus não é nada disto.
A simples tarefa de dizer o que é um vírus tem
sido tão complicada que as definições mudaram
ao longo dos últimos 120 anos. Em 1898, o bo-


tânico holandês Martinus Beijerinck, que estu-
dou o vírus do mosaico do tabaco, conjecturou
que se tratava de um líquido infeccioso. Duran-
te algum tempo, a definição de vírus pautou-se
maioritariamente pelo seu tamanho: mais pe-
queno do que uma bactéria, mas, à semelhança
desta, capaz de provocar doenças. Mais tarde,
pensou-se que os vírus seriam agentes submi-
croscópicos, contendo apenas um minúsculo
genoma, que se reproduzia no interior de cé-
lulas vivas. Hoje sabemos que isso foi apenas o
primeiro passo para os perceber melhor.
“Vou defender um ponto de vista paradoxal,
nomeadamente que os vírus são vírus”, escreveu
o biólogo francês André Lwoff em “The Concept
of Virus”, um influente ensaio publicado em


  1. Não foi muito útil enquanto definição, mas
    serviu de aviso, dizendo, de outra forma, que
    “são singulares”. Estava somente a pigarrear,
    limpando a voz antes de se lançar numa com-
    plexa disquisição.
    André Lwoff sabia que os vírus são mais fáceis
    de descrever do que propriamente de definir.
    Cada partícula viral é composta por um conjun-
    to de instruções genéticas (escritas em DNA, ou
    nessa outra molécula capaz de conter informa-
    ção, o RNA), embaladas numa cápsula proteica
    (conhecida como cápside). Em alguns casos, o
    cápside encontra-se rodeado de um envelope
    membranoso (semelhante ao caramelo de uma
    maçã caramelizada), que o protege e o ajuda a
    ligar-se a uma célula. Um vírus só consegue co-
    piar-se a si mesmo depois de entrar numa célula
    e controlar a maquinaria de impressão tridi-
    mensional que transforma a informação genéti-
    ca em proteínas.
    Se a célula hospedeira não tiver sorte, serão
    fabricadas muitas novas partículas virais, que
    irrompem, deixando a célula destruída. Esse
    tipo de danos (como os provocados pelo SARS-
    -CoV-2 nas células epiteliais das vias respirató-
    rias humanas) é parte da forma como um vírus
    se torna patogénico.
    No entanto, se a célula hospedeira tiver sorte,
    talvez o vírus se limite a instalar-se neste con-
    fortável posto avançado, ficando dormente ou
    integrando o seu pequeno genoma no genoma
    do hospedeiro. Aguardará calmamente. Esta
    segunda possibilidade tem muitas implicações
    para a mistura de genomas, para a evolução, até
    para a nossa noção de identidade enquanto se-
    res humanos.

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