National Geographic - Portugal (2021-02)

(Antfer) #1

22 NATIONAL GEOGRAPHIC


“Dois deles, pelo menos, revelaram-se mui-
to importantes”, disse-me. Eram importantes
porque tinham capacidade para desempenhar
funções essenciais à gravidez humana. Eram o
sincitina-1, descoberto por outros cientistas, e
o sincitina-2, descoberto pelo grupo de Thier-
ry Heidmann. A forma como estes genes virais
se tornaram parte do genoma humano e os fins
para os quais se adaptaram são pormenores de
uma história impressionante que começa com o
conceito dos retrovírus endógenos humanos.
Um retrovírus é um vírus com um genoma de
RNA que funciona numa direcção oposta à habi-
tual (daí o retro). Em vez de utilizarem DNA para
fabricar RNA, que por sua vez actua como mensa-
geiro enviado à impressora 3D para fabricar pro-
teínas, estes vírus utilizam o seu RNA para fazer
DNA e depois integram-no no genoma da célula
infectada. O VIH, por exemplo, é um retrovírus
que infecta as células imunitárias humanas, inse-
rindo o seu genoma no genoma da célula, onde
permanece latente. Em determinado momento,
o DNA viral é activado, tornando-se um modelo
para a produção de muitos mais viriões de VIH,
que matam a célula à medida que dela irrompem.
Eis a grande reviravolta: alguns retrovírus in-
fectam as células reprodutoras (as células que
produzem os óvulos ou o esperma) e, ao fazê-lo,
inserem o seu DNA no genoma hereditário do
hospedeiro. Estas secções inseridas são retroví-
rus “endógenos” (interiorizados) e, quando incor-
poradas em genomas humanos, são conhecidas
como retrovírus endógenos humanos (HERV).
Se não se lembrarem de mais nada deste artigo,
talvez seja bom os leitores recordarem o seguin-
te: 8% do genoma humano é constituído por este
DNA viral, incorporado na nossa linhagem por
meio de retrovírus, ao longo da evolução. Cada
um de nós é 1/12 HERV. O gene sincitina-2 é um
dos mais importantes dessas secções.
Estive quatro horas no gabinete de Thierry
Heidmann enquanto ele me explicava a origem
e as funções deste gene específico, com o compu-
tador ao lado para me mostrar tabelas e gráficos.
A essência é quase simples. Um gene que original-
mente ajudou um vírus a fundir-se com células
hospedeiras conseguiu entrar no genoma de ani-
mais ancestrais. Depois, foi reformulado para ge-
rar uma proteína semelhante, que ajuda a fundir
as células de modo a criar uma estrutura especial
em redor daquilo que viria a ser a placenta, crian-
do assim uma nova possibilidade para alguns ani-


mais: a gravidez interna. Essa inovação foi muito
importante para a história evolutiva, permitindo
que as fêmeas transportassem os seus descen-
dentes de um lado para o outro dentro do corpo,
em vez de os abandonarem, vulneráveis, num lo-
cal, como os ovos deixados num ninho.
O primeiro gene deste tipo com origem num
retrovírus endógeno acabou por ser substituído
por outros, semelhantes, mas mais adequados
ao desempenho da função. Ao longo do tempo,
a configuração deste novo modo de reprodução
melhorou e a placenta evoluiu. Entre estes ge-
nes virais adquiridos, encontra-se a sincitina-2,
uma de duas sincitinas presentes nos seres hu-
manos que ajuda a fundir células para formar
uma camada placentária adjacente ao útero.
Essa estrutura singular, funcionando como
mediadora entre progenitora e feto, permite a
entrada de nutrientes e oxigénio, a saída de re-
síduos e dióxido de carbono, e, provavelmente,
protege o feto de ser atacado pelo sistema imu-
nitário da progenitora. É quase um milagre de
eficiência de design, no qual a evolução moldou
um componente viral, transformando-o num
componente humano.
Fiz uma pausa para almoçar e depois prosse-
guimos a conversa durante mais duas horas. Por
fim, com o cérebro a zumbir e o bloco de notas
cheio, perguntei-lhe: o que diz tudo isto sobre o
modo como a evolução funciona? Ele riu-se com
gosto e eu ri-me também, maravilhado e cansa-
do. “Os nossos genes não são apenas os nossos
genes”, resumiu. “Os nossos genes também são
genes retrovirais.”

O CONTRIBUTO desses retrovírus, que nos deram a
sincitina-2, é apenas um exemplo, entre outros, de
padrões grandiosos. Outro é o gene ARC, que se
exprime como resposta à actividade neuronal em
mamíferos e moscas. É muito parecido com um
gene retroviral com código para um cápside pro-
teico. Investigações recentes de várias equipas,
incluindo uma liderada por Jason Shepherd, da
Universidade de Utah, sugere que o ARC desempe-
nha um papel essencial no armazenamento de
informação dentro das redes neurais. Dito de outra
maneira: na memória. O ARC parece fazê-lo empa-
cotando informação derivada da experiência (incor-
porada como RNA) nas pequenas bolsas proteicas
que a transportam de um neurónio para outro.
Na Faculdade de Medicina da Universidade
de Stanford, Joanna Wysocka, juntamente com
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