VÍRUS 29
Por isso, quando a frase “novo coronavírus” começou a ser usa-
da para descrever o agente que estava a causar trilhos de doença
em Wuhan, na China, aquelas duas palavras foram suficientes
para que os cientistas de todo o mundo estremecessem.
Os coronavírus pertencem a uma categoria tristemente céle-
bre de vírus, os vírus de RNA de cadeia simples, que incluem as
gripes, o Ébola, a raiva, o sarampo, o Nipah, os hantavírus e os
retrovírus. A sua má reputação deve-se, em parte, ao facto de
um genoma de RNA de cadeia simples ser propenso a mutações
frequentes à medida que o vírus se replica e de essas mutações
gerarem uma enorme variedade genética aleatória com a qual a
selecção natural pode trabalhar.
No entanto, os coronavírus evoluem com relativa lentidão,
para vírus de RNA. Têm genomas relativamente longos (o ge-
noma do SARS-CoV-2 tem cerca de 30 mil letras), mas os seus
genomas mudam menos velozmente do que outros, por pos-
suírem uma enzima de verificação que corrige as mutações. No
entanto, conseguem fazer um truque chamado recombinação,
através do qual duas estirpes de coronavírus, infectando a mes-
ma célula, trocam entre si secções dos seus genomas, dando ori-
gem a uma terceira estirpe híbrida de coronavírus. Pode ter sido
isso que deu origem ao novo coronavírus: o SARS-CoV-2.
O vírus ancestral residiria provavelmente num morcego, pos-
sivelmente um morcego-de-ferradura, pertencente a um género
de pequenas criaturas insectívoras com focinhos em forma de
ferradura que costumam ser portadores de coronavírus. Se ti-
ver ocorrido recombinação, acrescentando alguns novos e fun-
damentais elementos de um coronavírus diferente, isto poderá
ter ocorrido num morcego ou noutro animal. Os pangolins fo-
ram uma das espécies sugeridas, mas há mais candidatas. Os
cientistas estão a explorar estas e outras possibilidades, sequen-
ciando e comparando genomas dos vírus encontrados em vários
potenciais hospedeiros. Até à data, tudo o que sabemos é que
o SARS-CoV-2, tal como hoje existe nos seres humanos, é um
vírus subtil capaz de continuar a evoluir.
P
OR CONSEGUINTE, os vírus dão e os vírus tiram. Talvez
sejam difíceis de enquadrar na árvore da vida porque,
afinal de contas, a história da vida não tem a forma de
uma árvore. A analogia arbórea é apenas a nossa
forma tradicional de ilustrar a evolução, tornada canónica por
Charles Darwin. Mas Darwin, por genial que fosse, não sabia nada
sobre transferência horizontal de genes. Na verdade, não sabia
nada sobre genes. Não sabia nada sobre vírus. Tudo é muito com-
plicado, percebemos agora. Até os vírus, que parecem tão simples
à primeira vista, são muito complicados. Se, por um lado, os seres
humanos conseguem perceber os vírus em toda a sua complexi-
dade, tendo uma visão mais clara do emaranhado de ligações
existentes no mundo natural, por outro, quando reflectem sobre
os seus próprios conteúdos virais perdem parte do seu distancia-
mento sublime. Deixo então aos leitores a tarefa de decidir se isso
são vantagens ou desvantagens. j