Viaje Mais - Edição 187 (2016-12)

(Antfer) #1

106 VIAJEMAIS


NA BAGAGEM


As histórias vividas pela redação


África: um registro do irregistrável


PORNATÁLIA MANCZYK

pertas zebras (que de inofen-
sivas não têm nada) provavel-
mente avisando que havia hu-
manos por lá. Depois, aprendi,
na marra, a diferença entre
espécies de rinocerontes. Uma
mãe-rino ce ronte-branco junto
com seu bebê nem ligou para
a nossa presença por 10 min-
utos, mas algumas árvores adi-
ante, um rinoceronte-preto
correu em direção ao carro

incomodado com o jipe esta-
cionado à sua frente por um
minuto.“Os rinoce rontes-pre -
tos são mais agressivos e cor -
rem mais”, explicou David.
Mas certas coisas, em certas
viagens, nem precisa riam de
ensinamentos.
Já na Tanzânia, logo depois
de o avião de dez lugares ar-
remeter por conta dos mi -
lhares de gnus que ocupavam
a “pista” do parque Seren -
gueti, minhas pernas cam-

quadro, quatro girafas atraves -
saram a trilha com passos cal-
mos e dançantes como em zoo -
ló gico nenhum eu havia vis to.
Em certo momento, aban-
donamos o jipe e seguimos a
pé pela área só pelo gostinho
da aventura. Ao pri meiro sinal
de búfalos, nos es con demos
atrás de árvores, espiando vez
ou outra se o bichão notara a
nossa presença. Me senti nos

tempos de criança brincando
de esconde-esconde, espiando
atrás de um tronco e analisando
os olhares confiantes do búfalo
na minha direção. “O impor-
tante é o contato visual, e perce-
ber, pe las reações do animal,
até onde você pode se aproxi -
mar”, ensinou-me David, um
dos guias. Já a salvo dos búfalos,
era hora de voltar ao jipe rapi -
damente. É que os javalis, que
já haviam no tado nossa pre-
sença, che garam perto das es-

Passo por um tormento
men sal: a incapacidade de
transformar tudo o que é
vivido em uma viagem em
um texto. Infelizmente (ou
seria feliz men te?) as ex pe -
riên cias não ca bem impressas
em dez, do ze nem em infini-
tas folhas de papel.
Embora aconteça sempre,
a maior dessa aflição veio mês
passado quando embarquei
sozinha para a Áfri ca para es-
crever a reportagem sobre a
África do Sul desta edição e
uma matéria sobre a Tan zânia.
Uma hora depois de desem-
barcar no país de Mandela,
enquanto me apro ximava da
reserva Sham wari, avis tei da
rodovia mesmo umas cinco
zebras. A câmera es tava no
porta-malas e o zoom do
celular não foi po ten te o su-
ficiente para re gis trá-las. Uma
pena. Mas aque le se ria só o
primeiro dos inú me ros mo-
mentos contra di to riamen te
marcantes e irregis tráveis.
Deixei a mala no quarto e
em dez minutos já estava den-
tro do jipe onde o guia me es-
perava para o meu pri meiro
safári. Foi então que um barul-
ho atrás de uma moita anun-
ciou: havia leões ali. No carro,
esperamos uma mãe leoa sair
de trás dos arbustos junto com
seus dois filhotes, e, nesse ins -
tante, como a pincelada que
falta para completar um

baleavam para descer da
aeronave e dar de cara com
aqueles bichões barbudos que
eu pensava exis tirem apenas
em algum desenho animado
com cenário de savana. “Eles
não fa zem nada. Só co mem
grama”, tentou me acalmar
Na ziri, meu novo guia. Mais
tarde, nós dois dávamos gar-
galhadas lembrando do meu
medo enquanto fa zíamos um
piqueni que tranquilamente,
comendo bolachas e tomando
um chocolate quente, em meio
a uma quantidade absurda de-
les à minha direita, à minha
esquerda e à minha frente.
Ainda vi zebras ajudarem
gnus a atravessarem um rio
du rante a migração e um ma -
caco avisar os outros, emitindo
sons do alto de uma árvore,
sobre a presença de leões. Pas-
sei uma tarde perden do contas
de quantos leões ha via visto
(seis embaixo da árvo re, três
comendo, cinco beben do
água...), me assustei com pega -
das de hipopótamos ao redor
da minha tenda ao acordar,
assisti por uma manhã toda a
uma hiena se divertir rolando
em uma poça d’água...
Ih. Lá se foi o espaço des-
tinado ao vivido em uma
viagem. E mais uma vez vem
o tormento por perceber que
a emoção dos momentos mais
marcantes não cabe em pa -
lavras e em fotos.

SHUTTERSTOCK
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