Viaje Mais - Edição 189 (2017-02)

(Antfer) #1

98 VIAJE MAIS


NA BAGAGEM


As histórias vividas pela redação


PORROBERTO ARAÚJO

Foi trabalhar em uma re-
vista de motocicletas. Lá fez
muitas viagens. Foi cobrir ralis
de moto no Deserto do Saara,
pilotar nos EUA, acelerar pelas
Autobahn na Alemanha, até
fábrica no Japão ele foi conhe -
cer. Mas ir a Paris para visi tar
a Torre, nada.
Teve fi lhos. A escola, o
plano de saúde, o alu guel,
por mais que ten tas se, não
havia como economizar
pa ra fazer a viagem. Qua -
se sem espe ran ça, assistia
mais uma vez a O Últi-
mo Tan go em Paris, e fi-
cava no sofá.
Cansou-se.
Pediu o divór-
cio. As despe-
sas só aumen-

taram com o pagamento da
pensão. Tor nou-se um ho mem
triste, descrente e come çou a
negar tudo. A vida nunca
deixa a gente fazer o que quer,
rosnava, quando conseguia
comprar um Bordeaux.
A esperança quase voltou
quando aquela morena apare-

cológico dos viajantes a partir
de como viam a torre.
Tímidos: “Achei muito im-
ponente, nem cheguei perto”.
Racionais: “Não é tudo isso
que falam”.
Sovinas: “Pagar 17 euros
pelo elevador? Paguei só 7
e ainda me exercitei por
704 degraus”.
Presunçosos: “Eu me
mis turar à multidão?
Ja mais”.
Foi com uma con-
versinha na qual citou
Ernest Hemingway (“Lon -
dres é charada, Paris uma
explicação”) que atraiu
a aten ção da ga ro ta
mais bonita da facul-
dade. Na mo raram,
ca saram e na lua de
mel ele estava cer-
to de que final -
men te conhe -

ceria a Dama de Ferro, uma
pequena traição que a noiva
iria perdoar. Para aumentar o
suspense, a viagem começou
por Portugal, mas, quando o
novo casal chegou a Madri, a
recém-casada ficou doente e
tiveram de voltar. Ele não se
conformava, estava tão perto.

E


le era adolescente
quan do se apaixonou
por ela. Esguia, alta,
com aquele jeito todo seu de
olhar o mundo lá de cima. Há
muito desafiava intelectuais e
artistas que a chamavam de
vulgar, inútil e desnecessária.
Mas ele não se importou. Ele
era pouco mais que um meni-
no, morava no interior, sua
família jamais viajava, mas ele
estava resolvido: ia conhecer
a Torre Eiffel.
Era o seu assunto favorito.
Saber que ela tinha 324 metros
de altura qualquer um sabia.
Mas ele contava aos amigos
que, embora levasse o nome
de Gustave Eiffel, a ideia era
mesmo de Maurice Koechlin
e Émile Nouguier, dois en-
genheiros que trabalhavam
para Gustave e que, por sua
vez, haviam se inspirado no
Latting Observatory, uma
enorme torre de madeira e
ferro construída ao lado do
Palácio de Cristal de Nova
York e considerado o primeiro
arranha-céu nova-iorquino,
porém com vida curtíssima:
construída em 1856 pegou
fogo em 1859.
Foi estudar jornalismo.
Achou que assim teria mais
chance de um dia viajar para
conhecer a sua torre. Era sem-
pre o primeiro a receber os
amigos que viajavam para a
Europa. Traçava o perfil psi-

ceu. Tinha se proibido de falar
da Dama de Ferro, mas quem
sabe daquela vez. A intimidade
cresceu até que ela confessou
que desde menina sempre tin-
ha sonhado em conhecer mes-
mo o Coliseu, estava plane-
jando tudo para ir a Roma.
Desistiu, aquela certamente
era a mulher errada para ele.
Os cabelos se tornaram
grisalhos e ele tinha esquecido
Paris e a Torre Eiffel, como
havia deixado tantos outros
sonhos pelo meio do caminho.
Foi quando o telefone tocou.
Era da redação da revista em
que fazia freelancer. Precisa -
vam que ele cobrisse uma re -
pórter que não ia poder viajar.
A pauta era sobre como turis -
tas de diferentes países viam
a Torre Eiffel. Ele literalmente
babou de alegria. Finalmente!,
gritou pela casa: Deus existe!
Encontrou a fotógrafa no
aeroporto. Alta, esguia, sem
se preocupar em disfarçar as
rugas no rosto. Nas longas ho-
ras do voo, ficou sabendo que
ela tinha estudado francês por
muitos anos e que lia Gustave
Flaubert no original. Deixa -
ram as malas no hotel e saíram
caminhando pela noite. Es-
tavam de mãos dadas quando
viram a luz da Torre Eiffel girar
pelos céus parisienses. Foi com
um beijo na boca debaixo das
treliças de ferro que juraram
amor eterno.

SHUTTERST
OCK

A torre

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