Clipping Banco Central (2021-02-13)

(Antfer) #1

A vacinação como espetáculo


Banco Central do Brasil

Folha de S. Paulo/Nacional - Poder
sábado, 13 de fevereiro de 2021
Cenário Político-Econômico - Colunistas

Clique aqui para abrir a imagem

Autor: Demétrio Magnoli


No Brasil, em média, vacinamos menos de 300 mil por
dia. Sem escassez de imunizantes, seríamos capazes
de vacinar perto de 2 milhões. Mas, mesmo agora,
poderiamos vacinar facilmente 600 mil. A lentidão, que
amplifica as mortes, não escandaliza quase ninguém. A
indignação concentra-se na já lendária figura do fura-
fila. É que, de fato, mais que vacinar, queremos colocar
todo mundo no seu lugar numa hierarquia de
prioridades. Na sociedade do espetáculo, passar
julgamento moral vale mais que salvar vidas.


A cidade do Rio reservou um dia inteiro para cada grupo
etário de um ano, dos 99 aos 80. Vacinas e enfermeiros
despendem horas ociosas, diariamente, à espera do
idoso "certo". Legal, isso: garante que o idoso de 89
anos não passe na frente do camarada mais velho, de
93, participante de um grupo de maior risco. São Paulo
foi na mesma linha, economizando só um pouco do
ridículo: reservou uma semana completa para a faixa
dos 90 anos ou mais. Nas unidades de saúde, manhãs
inteiras passaram na janela sem a presença de um
único "vaci- nável: Bem planejado: assim, evitamos


aglomerações.

A fila perfeita é, claro, imperfeita. Profissionais de
saúde, nossos heróis, vêm primeiro. Daí que
imunizamos psicoterapeutas de 60 anos que trabalham
online antes de gente comum com mais de 80 anos. A
parcimônia cumpre função não divulgada: vacinando
bem devagar, escapamos do vexame de interromper a
campanha por esgotamento das doses -e, portanto, o
governo federal oculta seu atraso na aquisição de
imunizantes. Por essa via, na sociedade do espetáculo,
o negacionismo de direita estabelece uma aliança tácita
com o humanismo de esquerda.

"Somos um país só!" gritou o Ministério da Saúde na
deflagração da campanha da vacina, dizendo nas
óbvias entrelinhas que o comando pertence ao governo
federal (Bolsonaro), não ao governo paulista (Doria).
Mas, num "país só " a estratégia de imunização em
cenário de escassez priorizaria as regiões mais
afetadas, que são também os berços de cepas
mutantes do vírus. O Amazonas tem cerca de 510 mil
habitantes com mais de 50 anos. Já poderiamos ter
injetado a primeira dose em todos eles, sem deixar de
vacinar os agentes de saúde da "linha de frente" e
parcela dos idosos do país inteiro, se o slogan de
Pazuello fosse mais que uma peça de propaganda
política.

O governador de Nova York, Andrew Cuomo, não
desconhece o efeito narcótico da fotografia da fila
perfeita. Lá no começo, determinou a imunização
exclusiva dos profissionais de saúde -e decretou multa
de US$ 1 milhão para quem vacinasse algum fura-fila.
Resultado: uma campanha em ritmo de tartaruga
manca, em cenário de abundância de doses. Cuomo só
mudou de ideia quando emergiram imagens de ampolas
descartadas por vencimento de prazo, saltando do zero
ao infinito para autorizar a vacinação de todos os idosos
com mais de 65 anos. Na sociedade do espetáculo, é a
foto errada, não a razão, que provoca correções de
rumo.
Free download pdf