(20201000-PT) Exame Informática 304

(NONE2021) #1
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D


urante décadas a doença era
vivida em segredo, muitas
vezes dentro das quatro
paredes do lar. Nas famílias
‘amaldiçoadas’, o gene ia passando
de geração em geração, numa lotaria
injusta. Em pouco mais de vinte anos,
a paramiloidose, também conhecida
como doença dos pezinhos, deixou de
ser uma sentença de morte para passar
a ser um problema crónico, contro-
lável com um medicamento perten-
cente a uma classe totalmente nova.
Aprovado pelas agências americana e
europeia em 2018, o patisiran – clas-
sificado como terapia de RNA - veio
inaugurar um campo muito promis-
sor na Biotecnologia, que saltará das
doenças raras para chegar às patologias
mais comuns como o cancro. Há vá-
rios sinais neste sentido. Desde logo,
o número crescente de aprovações de
medicamentos desta classe em que se
tira partido do ‘poder’ do RNA – molé-
cula responsável por ligar e desligar os
genes, auxiliar em reações químicas e
construir proteínas. Se durante muito
tempo se pensou que o DNA e apenas
o DNA importava, nos últimos tem-
pos este intermediário molecular tem
vindo a ganhar grande protagonismo.
“É um agente muito mais ativo do que
se pensava inicialmente”, disse o in-
vestigador, especialista em terapias de
RNA, Bruce Sullenger, da Universidade
de Duke, Carolina do Norte num artigo
da revista Nature.
Na classe das terapias de RNA estão
incluídas três categorias: as que têm
como alvo o DNA ou até outros tipos
de RNA; as que têm como alvo as pro-
teínas e as que codificam proteínas. No
caso da molécula patisiran, da empresa
americana Alnylam, o mecanismo de
atuação passa pelo recurso ao RNA de
interferência (RNAi), uma pequena
molécula que vai interferir no processo
de fabrico da proteína. Ou seja, a TTR,
proteína que nestes pacientes está alte-
rada, deixa de ser produzida pelo fígado
e acumulada nos nervos periféricos. “A
tecnologia de RNAi é uma ferramenta
que permite silenciar genes de forma
específica”, explica Akshay Vaishnaw,

pegaptanib, um tratamento para uma
forma de degeneração macular relacio-
nada com a idade, que nos casos mais
graves pode acabar em cegueira.

DAS DOENÇAS RARAS AO CANCRO
“O vasto leque de opções terapêuticas
oferecidas pelo RNA atraiu um interesse
substancial quer dos institutos de in-
vestigação quer das empresas farma-
cêuticas. Com um número crescente de
terapias aprovadas a gerar agora lucros
significativos, o nível de investimento
no campo cresceu”, defende-se num
artigo de revisão publicado na Nature.
No início, foram as doenças raras,
para as quais não havia nada, ou qua-
se nada, disponível, que começaram
por beneficiar destes tratamentos, em
particular as doenças neurológicas,
como a atrofia muscular espinal ou as
doenças hepáticas, como é a doença
dos pezinhos. Atualmente, já está dis-
ponível comercialmente uma enorme
variedade de pequenas moléculas de
moléculas RNA, que podem silenciar
praticamente todos os genes que com-
põem o ADN humano. O que terá im-
pacto em diversas áreas da Medicina,
em particular na oncologia, em que
o potencial de aplicação tanto passa
pelo diagnóstico como pelo tratamento,
com um domínio crescente das terapias
de RNAi na dita medicina personaliza-
da. “É uma tecnologia que veio para
ficar, com uma boa relação de custo/
benefício”, sublinha a consultora in-
dependente em terapias avançadas,
Margarida Menezes Ferreira.
Akshay Vaishnaw não tem dúvidas
de que a tecnologia desenvolvida pela
empresa que dirige poderá ser utilizadas
nos mais variados problemas de saúde,
como a demência ou as doenças cardio-
vasculares. Quando o coronavírus sur-
giu, a empresa retomou uma investiga-
ção que tinha começado e interrompido
há uns anos, em torno do vírus sincicial
respiratório (que causa infeções respira-
tórias), para tentar desenvolver um me-
dicamento contra a Covid-19. A ideia
será atingir o RNA que o vírus precisa de
produzir para se replicar quando che-
ga ao pulmão. Mas a grande novidade

“A TECNOLOGIA


DE RNAI É UMA


FERRAMENTA QUE


PERMITE SILENCIAR


GENES DE FORMA


ESPECÍFICA. HÁ


MUITAS DOENÇAS


QUE RESULTAM DE


UM DEFEITO NUM


GENE E SE PUDERMOS


CORRIGI-LO, PELO


SEU SILENCIAMENTO,


OS PACIENTES PODEM


BENEFICIAR MUITO.”


Akshay Vaishnaw
é Presidente de Investigação
e Desenvolvimento da
farmacêutica Alnylam, que
desenvolveu o primeiro
medicamento de sempre, com
base no RNAi. A molécula
trata a muito portuguesa
doença dos pezinhos

Presidente de Investigação de Desen-
volvimento da Alnylam. “Em 2001, os
nossos fundadores científicos desco-
briram a aplicação deste mecanismo
em células humanas. Esta possibili-
dade levou-os a pensar que esta seria
uma ferramenta poderosa para tratar
patologias em humanos. Há muitas
doenças que resultam de um defeito
num gene e se pudermos corrigi-lo,
pelo seu silenciamento, os pacientes
podem beneficiar muito”, resume.
Outras estratégias baseiam-se na
ligação de uma molécula a um local
específico da proteína, de forma a mo-
dular o seu modo de funcionamento.
Um exemplo deste medicamento é o
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