(20200700-PT) Exame Informática 301

(NONE2021) #1
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O


que mais me dizem é que devia estar de-
baixo da secretária a fazer-lhes broches.
Chamam-me imensos nomes... puta, ca-
bra. Muitas vezes dizem que a minha mãe
devia ter abortado”. Isto por parte de jogadores. “As
pessoas que estão a ver, existem imensas que aparecem
no chat, e que nunca apareceram lá, e chamam puta,
logo. Também acontece, se pedirem algo e eu disser não,
insultam logo. As streamers não estão ali para servir
ninguém”. O testemunho é de Maria Neves, 24 anos,
natural do Porto e utilizadora da Twitch, o maior serviço
do mundo de transmissões de vídeo (live streams) em
direto. Já fez da produção de conteúdos na plataforma a
principal atividade remunerada, mas agora fá-lo como
um hobby, “para entreter e mostrar jogos”, entre três
a quatro vezes por semana, em transmissões de pelo
menos quatro horas. O relato da jovem portuense está
longe de ser um caso isolado. Ser mulher na Twitch é,
em várias ocasiões, sinónimo de ser vítima de com-
portamentos tóxicos, abusivos e que chegam mesmo
ao assédio sexual. “Já tive gajos, sabendo que tenho
namorado mesmo ao lado, atirarem-se a mim, ‘olá
linda, comia-te’, coisas assim. Eu não tolero isso na
minha stream. Dou logo ban [banir espectadores],
não comento sequer para não puxar mais
gajos desses”, contou também Beatriz
Cabral, streamer profissional da equipa
de desportos eletrónicos For The Win, em
entrevista à Exame Informática. Os relatos
são violentos, mas são um espelho dos
abusos pelos quais utilizadores da Twitch
têm de passar simplesmente pelo facto
de serem mulheres. “[Sou discriminada]
E não só por ser streamer, mas por ser
jogadora em geral. Em jogos tenho nome
de menina, mesmo que não diga nada no chat
escrito ou de voz, dizem para não estar a jogar,
dizem que sou má”, acrescentou a jovem de 22 anos,
natural da ilha de São Miguel.
Para Ivone Patrão, psicóloga clínica e investigadora
do Instituto Universitário de Ciências Psicológicas,
Sociais e da Vida (ISPA), estes casos são de “completa
discriminação de género, é cyberbulling claro, ainda
por cima repetido, por descoberta da característica
de uma pessoa”. As funcionalidades da Twitch, muito
focadas na transmissão em direto da própria pessoa a
jogar, fazem com que seja propícia a alguns dos proble-
mas descritos pelas streamers. “O facto de haver uma
transmissão em direto e comentários em direto permite
o acting out, a reação por impulso. Nesse impulso pode
haver pouco parar para pensar, o que vou dizer, o que
vou comentar. A pessoa pode sentir que pode comentar
como quiser e exigir como quiser".

MALÍCIA E INTENCIONALIDADE
Ainda segundo a especialista em psicologia, quem faz
comentários abusivos e sexuais são pessoas, muitas ve-
zes jovens, que “com frustrações na vida pessoal”, mas
os comportamentos abusivos são transversais a outras
plataformas online. Das diferentes investigações que
tem feito para o ISPA sobre comportamentos online dos

jovens, cerca de 17% dizem que “já foram pelo menos
uma vez vítimas de cyberbulling”, e, dentro desta per-
centagem, “entre 10 e 15% já tiveram uma mensagem
de assédio sexual”, revela. As duas streamers que fala-
ram à Exame Informática relatam mesmo um ‘estudo’
prévio de outras plataformas por parte dos homens que
fazem as ofensas. Maria Neves, por exemplo, revelou
que depois de alguém ter feito uma subscrição ao seu
canal na Twitch, uma forma de apoiar monetariamente
o criador de conteúdo, pediu-lhe mais tarde o envio
de fotos privadas através do Instagram. “Isso acontece,
imensas vezes. Se não damos, eles vão pedir reembolso
[da subscrição] e temos de pagar as taxas. O que eu lhes
digo, se quiseres reembolso pede, mas não te vou dar
nada”, adianta a licenciada em análise clínica e saúde
pública. Já Beatriz Cabral conta que muitas vezes recebe
comentários ofensivos de espectadores que viram a
sua foto de perfil em redes sociais como o Facebook
e o Instagram, tirada por um fotógrafo e numa sessão
dedicada, e depois, quando a veem a transmitir online
sem maquilhagem, acusam-na de usar a imagem para
atrair espectadores para a stream. “[Recebo] Bastantes
insultos sobre a minha aparência física, [dizem] que sou
feia, isto e aquilo, é a parte que me manda mais abaixo.
(...) Tenho problemas de autoestima
e tem um impacto grande em mim”,
confidencia.
Mas há mais histórias além destas
relatadas à Exame Informática. Na rede
social Twitter, na qual há uma forte
comunidade ligada aos videojogos, des-
portos eletrónicos e criação de conteú-
dos para plataformas digitais, não é difícil
encontrar desabafos de jogadoras portuguesas
que foram alvo de discriminação, insultos ou
assédio na Twitch. Uma destas streamers relatou, re-
centemente, ter saído de uma transmissão em direto a
chorar por considerar que não consegue streamar [ato
de transmitir em live stream] e jogar à vontade. “Não
sou feita de ferro”, desabafou. Os comportamentos abu-
sivos relativamente a mulheres na Twitch são também
uma realidade noutros países. Ficou conhecido o caso
da streamer australiana Amber Wadham que decidiu
ripostar e gozar em direto com todos os espectadores
da sua transmissão online que a assediavam. Sempre
que tal acontecia, lançava um genérico semelhante ao
de um noticiário televisivo e anunciava um aconteci-
mento de última hora, para depois dizer: “Sou uma
mulher na internet, mas não quero sair com vocês.
É possível as pessoas estarem online e não quererem
fazer o tango horizontal uns com os outros ou com
qualquer um de vocês. (...) Não me perguntem sobre
as minhas preferências sexuais ou sobre encontros. De
volta a vocês pessoal”. A forma original e direta como
endereçou o problema tornou o momento viral. Só na
rede social Twitter, o vídeo acumulou em poucos dias
mais de três milhões de visualizações e foi partilhado
dezenas de milhares de vezes.
A Exame Informática contactou a Twitch a pedir uma
entrevista com um porta-voz da plataforma que pu-
desse falar sobre as ações da empresa contra compor-

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