000.Fernão Lopes

(José Nuno Araújo) #1

vinham com feixes de lenha, outras traziam carqueja para acender o fogo, pensando queimar com ela o muro
dos paços, dizendo muitos doestos contra a rainha.
De cima não faltava quem gritasse que o Mestre estava vivo e o conde João Fernandes morto. Mas isto
ninguém o queria crer, dizendo:



  • Pois se está vivo, mostrai-no-lo e vê-lo-emos.
    Então os do Mestre, vendo tão grande alvoroço como este e que cada vez se acendia mais, disseram que
    fosse sua mercê de se mostrar àquelas gentes, de outra maneira poderiam quebrar as portas, ou pôr-lhes fogo, e
    entrando assim dentro à força não as poderiam depois impedir de fazer o que quisessem.
    Ali se mostrou o Mestre a uma grande janela que dava sobre a rua, onde estavam Álvaro Pais e a maior força
    da gente, e disse:

  • Amigos, sossegai, que eu estou vivo e são, a Deus graças.
    E tanta era a perturbação deles, e de tal maneira tinham já em crença que o Mestre fora morto, que tais havia
    que porfiavam que não era aquele.


Crónica de D. João I de Fernão Lopes (ed. Teresa Amado), Lisboa, Comunicação, 1992
(Texto com algumas alterações, feitas de acordo com a grafia actual.)

CAPÍTULO 148
DAS TRIBULAÇÕES QUE LISBOA PADECIA POR MÍNGUA DE MANTIMENTOS
Estando a cidade assim cercada na maneira que já ouvistes, gastavam-se os mantimentos cada vez mais, pelas
muitas gentes que nela havia, tanto dos que se acolheram dentro do termo, de homens aldeãos com mulheres e
filhos, como dos que vieram na frota do Porto. E alguns se metiam às vezes em batéis e passavam de noite
escondidamente para as partes de Ribatejo e, metendo-se em alguns esteiros, ali carregavam de trigo que já
achavam prestes graças a recados que antecipadamente mandavam. Partiam de noite remando mui rijamente, e
algumas galés castelhanas, quando os sentiam vir remando, remavam também à pressa sobre eles. E os batéis
para lhes fugir e elas para os tomar eram postos em grande trabalho. Os que esperavam por tal trigo andavam
pela ribeira da parte de Xabregas, aguardando a sua chegada, e os que estavam de vigia, se viam as galés
remar para lá, repicavam logo para que ajudassem os batéis. Os da cidade, logo que ouviam o repique,
deixavam o sono e tomavam as armas e saía muita gente. Defendiam os batéis com bestas, se cumpria, ferindo-
se às vezes de uma parte e da outra. Porém nunca foi vez que tomassem algum batel, salvo uma, em que certos
batéis que estavam no Ribatejo com trigo foram denunciados por um homem natural de Almada e tomados pelos
castelhanos. O homem foi depois apanhado e preso e arrastado e decepado e enforcado. E posto que tal trigo
alguma ajuda fizesse, era tão pouco e tão raramente que seria preciso multiplicá-lo, como fez Jesus Cristo aos
pães com que fartou os cinco mil homens. Nisto consumia-se a cidade em tanto aperto que as esmolas públicas
começaram a faltar e nenhuma geração de pobres achava quem lhe desse pão. De modo que, vencendo a perda
comum, de todo, a piedade, e vendo a grande míngua dos mantimentos, resolveram deitar fora as gentes pobres
ou incapazes para a defesa. Isto foi feito duas ou três vezes, até lançarem fora as mancebas mundanas e os
judeus e outras semelhantes pessoas, dizendo que, pois tais pessoas não eram para pelejar, não gastassem os
mantimentos aos defensores. Mas isto não aproveitava coisa que muito prestasse. Os castelhanos, às primeiras
vezes, alegraram-se, acolhendo e dando de comer a esta gente. Depois, vendo que isto era com a fome, fez el-

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