000.Fernão Lopes

(José Nuno Araújo) #1

com o profeta: “Ora viesse a morte antes do tempo e a terra cobrisse nossas faces para não vermos tantos
males!” E por isso rogavam à morte que os levasse, dizendo que melhor lhes fora morrer que lhes serem
renovados cada dia seus variados padecimentos. Outros se queixavam a seus amigos dizendo que tinham sido
gente desventurada em não se darem antes a el-rei de Castela, que padecerem cada dia novas desgraças,
inteiramente convencidos de que a Fortuna lhes traria os piores males. Sabiam, porém, isto o Mestre e os do seu
Conselho e eram-lhes dolorosas de ouvir tais novas. E, vendo estes males a que não podiam acorrer, cerravam
seus ouvidos ao rumor do povo.
Como não quereis que maldissessem sua vida e desejassem morrer alguns homens e mulheres, que tanta
diferença há de ouvir estas cousas para aqueles que as então passaram como há da vida para a morte?
Os pais e as mães viam estalar de fome os filhos que muito amavam, rasgavam as faces e os peitos sobre eles,
sem terem com que os socorrer senão pranto e derramamento de lágrimas. E sobre tudo isto, medo grande da
cruel vingança que entendiam que el-rei de Castela deles havia de tomar. E assim eles padeciam duas grandes
guerras, uma dos inimigos que os cercavam, outra dos mantimentos que lhes faltavam, de maneira que estavam
entregues ao cuidado de se defenderem da morte por duas maneiras. Para que é dizer mais de tais
necessidades? Foi tamanha a escassez das cousas necessárias que soou um dia pela cidade que o Mestre
mandava deitar fora todos os que não tivessem pão que comer e que ficassem nela somente os que o tivessem.
Mas quem poderia ouvir sem gemidos e sem choro que tal resolução ia ser intimada contra aqueles que não
tinham pão? Porém, o saber que não era assim foi-lhes já algum tanto de conforto. Onde sabei que essa fome e
necessidade que as gentes assim padeciam não eram por ser o cerco prolongado, porque não havia tanto tempo
que Lisboa estava cercada. Mas era por azo das muitas gentes que se acolheram a ela de todo o termo, e
também da que chegou na frota do Porto, e por os mantimentos serem muito poucos.


Crónica de D. João I de Fernão Lopes (ed. Teresa Amado), Lisboa, Comunicação, 1992
(Texto com algumas alterações, feitas de acordo com a grafia actual.)

http://www.usp.br/cje/anexos/A02_fernao_lopes.pdf

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