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Banco Central do Brasil

Correio Braziliense/Nacional - Cidades
sábado, 27 de fevereiro de 2021
Cenário Político-Econômico - Colunistas

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Autor: por Luiz Calcagno >>
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Conversas de memória


Tenho um amigo que gosta de visitar o túmulo do pai.
Gosta de ir lá, de vez em quando, para, como ele diz,
conversar com as memórias. "O velho não está mais
aqui. Mas ainda existe dentro de mim", ele explica.
Então, pra que ir até o cemitério? Não que eu tenha
medo ou veja problemas em ir ao cemitério, claro. A
ideia, ele explicou, é como a de um ritual individual. A
proximidade dos restos mortais do pai o ajuda a evocar
aquela memória com a qual ele deseja conversar. Ela, a
memória, não responde, ele disse. Mas, como se trata
de algo que, na verdade, faz parte do filho, e não do pai,
funciona como uma reflexão.


Fui autorizado a contar a história, desde que
preservasse a fonte. Ateu convicto, ele aprendeu a ver a
continuidade da vida nas memórias e na cultura que
recebeu dos pais. Às vezes, a coisa endurece. A vida,
criança, aperta os dedos nos nossos braços e corações,
como se fôssemos de massinha, e é mais duro ter a tal


conversa, ele relatou. Às vezes, a vida nos empurra e
vamos rápidos como bola de gude, e tudo parece bem,
ao menos até o próximo acontecimento. E às vezes,
parece que está tudo bem, mas vem a saudade, com
dedo frio, esvaziar os arredores dos universos
particulares.

As conversas foram mudando com o tempo. Quer dizer,
não é que ele fosse ao cemitério todos os dias, ou
semanalmente. Me garantiu que é algo esporádico.
Como se, ao precisar ficar só, consigo mesmo,
escolhesse, também, ficar com o que restara do pai,
que, explicou, é tão parte de si quanto unha, já que sua
existência povoa os seus neurônios trilhados no
caminho contrário ao do futuro. Há até outras versões
do mesmo pai, com seus irmãos e quem se lembra dele.

A conversa sobre morte, existência, extinção, correu
solta. Correu leve. Vozes do outro lado do telefone, que
escutei com atenção durante uma caminhada matinal
cinzenta, mas alegre, no Eixão do Lazer. E como as
conversas dele com o pai mudavam a cada esporádico
encontro, ele percebeu que lidava com a própria
saudade, com a própria dor, e, assim, lidava melhor,
também, com a vida. Com o trabalho que invade o lar e
as afetividades nos tempos de pandemia, com os
perigos e o medo da perda, constantes na vida de todos
nos nossos tempos, como um estranho no vagão.
Mesmo que não quiséssemos ver.

Certa vez, depois de algumas palavras, cobranças de
um filho insatisfeito, porque você não estava lá, porque
não me falou, por que fez isso ou aquilo, ele mesmo
sentou sobre o retângulo de concreto e chorou, pedindo
desculpas. Uma outra vez, falou em voz alta sobre a
própria vida. Os funcionários da Campo da Esperança
pensaram que ele rezava. Ou ele pensou que assim
pensavam dele. Envergonhou-se. Dessas vergonhas
tolas que temos, na verdade, de nós mesmos. A
conversa correu como um encontro constrangedor entre
pai e filho, sombrios em uma sala tensa, como em uma
canção triste de Sérgio Sampaio.
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